quarta-feira, 18 de dezembro de 2019

O Boto



Meus olhos são captados por aquele chapéu que flutua num mar de cabeças, nas ondas das ruas lotadas de Sampa. São Paulo, Sampa... Eu lhe ensinei a declinar esta cidade verbo num latim de muitos erres e erros. Não havia chapéus, então, em Sampa. Pelo menos, o seu ainda não.

Hoje ele passa por mim como miragem e some na cidade que eu te ensinei a amar: "- Olha o viaduto, olha essa urbe lindamente caótica que contorna nosso amor lindo e caótico!". Como no slogan da marca, eu gritava para os carros surdos de buzinas: "amo muito tudo isso!". Seus olhos pousados riam no meu corpo que refletia seu riso. Era tanta luz e não havia vontades de chapéus.

Amo muito tudo isso. E tudo éramos nós. Não, nenhum chapéu, esse camafeu que nos une nas lembranças sombreadas que buscamos, tateando, quando raramente nos vemos. Para te buscar e te achar, não precisava passar um chapéu, havia aqueles seus olhos sempre pousados em mim.

Levávamos a cabeça livre, o coração livre, e pensavam todos que éramos prisioneiros. Pensávamos nós que não, sabíamos nós que sim.

Hoje, andando sozinha, surpreendo-me com um chapéu sem cabeça que me desafia na rua e vai por si, sem mim, sem você. E ele brinca entre a massa de gente, antes que eu veja um rosto por sob sua bainha. E o tal chapéu fugitivo faz como você e balança em minha história e some no meio das ideias, da vida, das necessidades, de outros destinos, de outros amores...E desde o dia em que você me disse que um chapéu lhe abrigava os pensamentos voadores, todos os chapéus passaram, para mim, a ser seus; os pensamentos já não.

"Tajà-Panema chorou no terreiro... Foi Boto, Sinhá."*

A vã esperança de encontrar a velha mágica debaixo desse chapéu, conduz ainda meus passos ligeiros  ao ponto de encontro vão. E, no vão do tempo e da escada da estação, lá está ele. Está você? Já não sei se o que busco é seu chapéu, sem o que não tenho mais a certeza concreta de sua presença.

Seu rosto se ilumina em luz quase desconhecida, quase. Tenho medo de procurar seus olhos e não encontrá-los. Entrego-me, então, à dança encantada desse chapéu e agora ele se perde comigo, tão perdida, na eterna multidão em volta de nós.






*Referência à música  regional da Amazônia "Foi Boto, Sinhá", de Waldemar Henrique.

quinta-feira, 24 de outubro de 2019

Passageira






O que lhe doía
não era ver as imagens
do lado outro da janela,
junto com a de seu rosto refletido,
dissolverem-se à velocidade do trem
nas estações passageiras.

Nem a ideia da  frieza
das roldanas  a esmagar
carne contra trilho,
consumando a razão
antes do passo
dessa descorajada Karenina.

Seguia com outra dor;
dentro do vagão,
corpo íntegro e
alma desabrigada.

Olhos vazios fitos
no cheio de fora.
E uma preguiça de doer os ossos
na locomotiva de viver,
que prosseguia...

Doía-lhe era a dor
que lhe ficava,
não sentida pelo ausente
e pela ausência
alimentada.

Doía-lhe saber que
essa dor exclusiva
não lhe garantiria
a dose balsâmica
do remédio da solidão.

Ficaria:
como companheira na vida.
Seguiria:
como companheira na morte.

domingo, 15 de setembro de 2019

Ontem, dois sentimentos me invadiram diante de uma banca de peras em um sacolão: desejo e tristeza.
O desejo provindo de toda uma conjunção sensorial, animalesca, natural; era cheiro, era cor,era a memória do paladar tamborilando meus sentidos, fazendo-se água em minha boca.
A tristeza, como sempre, era nascida da razão e seus requintes de consciência.
Doze reais o quilo da pera! Quantas peras comporta um quilo? Quanto uma pera mata da fome? Quantas fomes de uma mesa, quanto  de desejo na panela vazia?
Uma fruta sendo um luxo em um país com milhares de quilômetros de território, com uma diversidade climática e agrícola dessa terra "em que se plantando tudo dá". Não dá.
Meu desejo, de pronto, entra em choque com minha consciência. Nada a ver com o eterno conflito da mordida na maçã. Este sempre esteve no terreno da moral e da religião; pouco tempo o tive.
Mas o saber que, enquanto em mim há um conflito porque tenho uma escolha, a de tomar ou não a pera, justamente essa prerrogativa de escolha, me  traz a sensação de uma tremenda injustiça, pois tanta mas tanta gente não pode sequer pensar em comprar uma pera.
Uma simples pera, cujo desejo em mim tão pulsante, tantas vezes se esvai na frieza de uma geladeira, uma pera simplesmente esquecida, torna-se o símbolo da gritante e injustificada diferença de possibilidades, de acesso, de desejos, de sonhos. Neste país tropical, de profusão de cores e abastança de recursos naturais e alimentos, fartura e diversidade,  representado nas casquetes de Carmem Miranda, seu povo, suas crianças não podem ousar morder as cores da feira, comer pera, nem ameixa, nem manga, nem banana, nem feijão...Como na música do Chico, alimentam-se de luz, para  quem sabe voltar ao paraíso de onde, não entendem, também foram expulsas, dividindo a conta com os que comem maçãs.
Essa tristeza, o exato reverso de uma tênue esperança que tive de viver num país mais justo, tira-me a graça, o desejo, o apetite...
Vivemos num país de duas fomes, a do corpo e a da razão.

segunda-feira, 9 de setembro de 2019

quinta-feira, 5 de setembro de 2019

Astros no Mundo*





Uma poeira de estrelas
maculava o imenso negro 
pois, em meio à escuridão
da conjunção de nossa carne,
gritando delírio,
eram nossos dentes
que brilhavam como astros



"Sede irrepreensíveis e sinceros filhos de Deus, inculpáveis, no meio de uma geração corrompida e perversa, entre a qual deveis resplandecer como astros no mundo...(Filipenses 2:15)

segunda-feira, 2 de setembro de 2019

Mandamento



Não me acenda velas
porque meu amor
não é devoto e nem santo
É carne em delírio queimando
vulcões de desejos
que ao pó voltarão

Sabendo de mim, não queira
 reter-me das asas o adejo
com lágrima e manto
de madona lavada
em óleos de unção

Há águas em mim
e brotam de outras
regiões suculentas
das sedes dos homens
sempre sedentas

Nâo quero guardar
seus domingos e festas
Cumprir mandamentos
em nome do amor
jurar sacramento

Minha paixão é do mundo
é baixa e rasteja
por ruas imundas
fiel à certeza
do gozo e da dor

Seu nobre evangelho
suplícios benditos
sangrentos joelhos
em rijas alfombras
não tocam em mim

Profana, sou ave noturna
que busca a penumbra
Em noites sem fim, perdição

Sou gata em telhado,
cantora da lua
Sou anjo caído,
sou bicho pagão








sábado, 31 de agosto de 2019

Décimo Segundo





Passou a vida inteira a esperá-lo chegar... Ele nunca chegou.
Foi numa noite, depois de espichar a orelha para cinquenta elevadores em subidas e descidas que veio perceber que, na corda dessa espera de vem não vem, tremia seu coração, exposto, pesado, um só emaranhado de não vida. Era o destino tecendo agonia ou alegria no décimo de segundo entre o apertar do botão e o deslizar das cordas daquele vagão.
Desesperou-se como nunca, nesse dia. Era como se tivesse recebido a pior notícia do mundo, aquela sempre aguardada e nunca querida. Mas se sentia pronta como que tendo o pino da granada,  tentadoramente, enroscado em seu dedo. O triunfo da verdade explodindo dentro de si como o impacto irreversível da bomba H no Japão. Aquele instante que muda tudo... E a opressão de seu peito, tão silente e deletéria, começou a desfazer-se na linha puxada  de uma meada, que já trouxe tanta coisa e gente, na linha rodante de um elevador que trazia todos, menos ele que não vinha.
Ele nunca viria, compreendeu. Não mais esperaria.
Mas deixar de esperar também tinha seu preço. E ela que adquirira o hábito dessa espera, descobria que havia nela muitas outras. E o vazio dessa que deixava de existir se preenchia dessas tantas, porque, por hábito ou essência, era feita de esperar. Talvez, nunca tenha querido  de fato que ele chegasse. Era uma espera só sua, que  em nada mais tocava nele.
Soube assim que as linhas estavam, agora, em suas mãos e ela é quem teceria seu tempo, seu desejo, sua espera. Só dela.
Pôs-se na janela do apartamento, décimo segundo andar, estratégica altura de voar e de uma longa viagem de um elevador que não se sabe o que traz (ou se traz), mas que vai e vem carregando essencialmente esperas.
No entanto, com um sorriso no rosto, vestida de cor esperança, ao som da voz rouca de Belchior no aparelho sonoro, placidamente fitava o céu da noite se aprontando para o dia.  Um radioso dia prometia aquele festejo da aurora. E ela se punha exultante a esperar quem nunca precisaria chegar.
Andares abaixo do seu, outra janela se fechava após a parada de um elevador, luzes se apagaram,  um silêncio se instalou; lá também uma espera se findou.

quinta-feira, 29 de agosto de 2019

Entre nós

- Você não crê em Deus?
- Creio que sim.
- Não crê, caso contrário, não faria o que faz.
- E o que eu faço que me desacredita Deus?
- Comete o pecado da carne, incessantemente.
- Por isso não creio em Deus?
- Sim.
- Pois, então, por certo eu creio sim. Mais: Deus também crê em mim!
- Crê?
-  Ele e eu não cremos é no pecado.







terça-feira, 20 de agosto de 2019

Sinal verde

A imagem do moleque preto
com a placa "Tenho fome"
atravessa meu vidro fechado
e tantos vidros e corações fechados
nos carros, blindados.
O sinal verde vem dizer
para seguirmos indiferentes.
E a fome e o menino
sequer tiveram espaço
no espelho retrovisor.
Passou. A vida prossegue
e rezamos a Deus, agradecidos,
pelo dia reto, sem os atropelos
que entravam seu trânsito.
Os automóveis seguem em
obcecada procissão
passando por bares, calçadas, tevês, risadas,
alívios de sinais verdes.
E a injustiça gargalha na face em transe
dos motoristas sérios,
e nas ruas, e nas TVs, e nas caras feias de juízes nus,
e no odor das mensagens de motor.
A injustiça está consumada, feita.
Não admite marcha à ré.
Segue o tal trânsito que não pode parar.
A vida continua e é isso que mais dói
no estômago vazio do menino nos semáforos 
com a placa "Tenho fome".
De quê?


A pulso viver

O que é o pulsar
senão uma sequência
de sustos.



sábado, 3 de agosto de 2019

Do Desejo ou Crônica do Inevitável


Encontravam-se, face a face, enfim,
e resolveram que se resolveriam
no apartamento dele.
De fato não se conheciam.
Ela o observava nos momentos
de descuido nele: nariz, perfil,
lábios em movimento na fala
que ela não ouvia.
Chamou-lhe especial atenção
as mãos grandes, os dedos
metendo-se no orifício da máquina
a buscar o troco do refrigerante
que não saciaria explícita sede
Ele lhe estendeu aquelas suas mãos.
"Enormes seus lindos dedos." - pensou.
"Se esse cara for um psicopata,
eu estou fodida... Muito bem fodida!"...
Ela tomou as mãos oferecidas; sorriram-se.
Conheciam-se então.
Seguiram juntos misturando-se à multidão...

terça-feira, 30 de julho de 2019

Vice versa


Se o avesso virasse o direito, o que veriam do meu avesso agora direito seriam muitas quinquilharias como pregos, cetro, vidros de garrafa estilhaçados, garrafas meio cheias, margaridas plantadas em vasos de barro, sóis fortes e dias melancólicos, noites ínfimas, felizes e estreladas, cadeados velhos, porta fechada, molho de chaves  em desuso, uma luneta apontada para o espaço, binóculo voltado para a janela do vizinho, uma feia voraz, um coelho assustado, um relógio parado, outro, enorme, girando ponteiros a altas velocidades, uma janela para uma estrada, uma corrente envolvendo uma caixa escrita 'fantasmas", mulheres desejosas, uma fonte, um menino comendo pão, um denso lago de areia movediça, um pássaro preto, um vale de borboletas, uma trilha serpentina entre muitas montanhas, uma praia branca e um céu azul, uma festa e uma guerra, um homem nu com os braços abertos e o rosto coberto, um hímen escorrido numa perna de velha, uma rede na brisa, uma gaita e uma cítara, uma fruta amarela na mão, vestido azul, lenço vermelho, uma casa rústica, uma linha de trem, o limiar de um abismo, um copo vazio diante de uma boca com sede, asas...

Do lado direito, agora avesso, haveria algo que se parecesse com paz e beleza, mas que não era.

Sinal dos Tempos

Hoje a solidão
Ilumina
A nossa cara
Com a luz do smartphone

A lua, o amor
Saudade
Flutuam nas ondas de um sinal
Sinal dos tempos

segunda-feira, 29 de julho de 2019

Regresso a Casa






Nem folguedos
foguetes, fanfarras
flores num ralo buquê
nada disso esperava

Bastava um sorriso
aquele algo que dissesse
que tudo mudou
ou que o do mesmo se adiava

Mas o que é de sempre
é sempre, logo ou tarde
E, outra vez, voltava querendo
o que nunca teve ou teria.
E isso também não mudou

terça-feira, 23 de julho de 2019

 



Quisera ter corpo

minh'alma banhada em sol

Para esquecer-se no langor

desta tarde preguiçosa

sábado, 20 de julho de 2019

Hasta la victoria!

Machado de Assis, escritor negro, brasileiro, a meu ver o maior escritor do mundo, faz com que somente a leitura completa de seu livro Quincas Borba, com cada peça da narrativa, nos permita decifrar o sentido da frase "ao vencedor, as batatas".
Nem estudos, debates, citações sobre essa filosofia por ele (através de Quincas Borba) chamada de Humanitismo, e nem mesmo a alegoria da guerra pelas batatas, narrada no livro, são suficientes para nos levar à plena apreensão do sentido dessa frase.Qual! Só quem pode explicar as profundezas alcançadas por Machado de Assis é Machado de Assis. E ele o faz, sem eufemismos.
Ao vencedor, as batatas.
Não se compreende a filosofia resumida nessa locução sem estar nu para aceitar que nós, humanamente (e desgraçadamente?), a vivenciamos.Há nela a mesma grandeza, e insofismável e indeclinável revelação da alma humana, que há na frase de Jesus "quem nunca pecou que atire a primeira pedra", e pedras em forma de armas morais foram rolando ao chão, porque nem as pedras aceitariam tamanha mentira da autoafirmação de inocência daquelas almas por si mesmas condenadas.
A vida é uma árdua e sangrenta luta pelas batatas. E não espere nada dela que não seja as batatas aos vitoriosos. Para todo o sempre e sempre, só as terão os vitoriosos.Morte aos deuses!
Que sejam sacrificados os fracos, covardes!, gritou Nietzsche. Nem maçã envenenada de saber, nem maná caindo do céu, mas batatas!
A vida é luta, com derrota ou vitória, e as batatas. Para tê-las, à vitória. "Siempre".

quarta-feira, 17 de julho de 2019

A BORBOLETA E O CROCODILO (FÁBULA DE UM QUASE PRAZER)




Ele é feroz e está sempre preparado para o ataque e autodefesa. É mortalmente perigoso em seu habitat, mas capitula facilmente fora dele.  Se apanha a presa, no entanto, devora-a sem piedade.

Ela tem um tempo curto e nem sabe que deveria vivê-lo em sua intensidade, mas o faz. É frágil, colorida, leve e inconsequente.

Ela pousou sobre ele. A cena é meio disforme e estanha no princípio, mas, aos poucos, vai-se tornando bela pelo paradoxo colossal das duas peças da combinação.

Ele repousa e aceita aquele afago e deixa-se tocar, também, pelo calor do sol, da água morna do rio. Tudo está quieto... Seus olhos se fecham, mas não trazem a escuridão que lhe permita a entrega ao descanso.

Ela ainda está pousada sobre ele e uma leve brisa logo agitará suas asas e a levará a outro voo. Nunca se saberá se ele perceberá a sua partida: ela tão delicada sobre uma pele tão endurecida. Nunca se saberá se lhe será indiferente a despedida ou se indiferente será qualquer tentativa de fazê-la ficar.

Ele continuará imóvel; seus olhos não abrirão, mas brilharão, talvez, uma lágrima. Talvez.

Ficará ali, aceitando e sorvendo o calor do sol, a água morna... Continuará crocodilo por muito ainda, até o fim.

Ela, a qualquer tempo, pouco tempo, já não será; atingirá, enfim, sua metamorfose e se tornará  flor ou luz.

                                                                              (junho/2013)


Imagem: foto de Mark Cowan, no Amazonas - Brasil.

terça-feira, 16 de julho de 2019

Vai ser outro dia



Beatles Forever.
Elvis não morreu.
Lula livre.
Do sentimento à ideia e à frase na camiseta, a vida contínua continua. E o tempo faz esquecer, se não o aperto, a causa do aperto no peito. E todo aperto se normaliza em meio a tantos apertos normais, na vida, no ônibus, no bolso, na cova.
"- Uma banda...
- Beatles Forever.
- Uma crença...
- Elvis não morreu.
- Uma saudade...
- Lula livre... Traga outra caipirinha, garçom, que hoje é sábado e amanhã...'vai ser outro dia... laralá"

segunda-feira, 8 de julho de 2019

Graças a Deus ou Ladainha dos Privilégios

Graças a Deus
Que não sou
Aquele menino importunando num farol
Pedindo dinheiro pro seu pão

Graças a Deus
Sou filha, mãe, pai
De almas benditas
Que não sentem a dor do menino
nem fome de pão

Graças a Deus
Não durmo na rua
flagelando os passantes nas noites
descobertas de proteção e calor

Graças a Deus
Sou filha, mãe, pai
De almas benditas
que têm teto e merecem
passagem, coberta e calor

Graças a Deus
homens fardados armados de ódio
não invadem meu lar a roubar
as vidas baratas de meus filhos

Graças a Deus
sou filha, mãe, pai
de almas benditas
que obedecem e aplaudem a lei
que não protege seus filhos

Graças a Deus
meu corpo doente
tem médico e leito e salvação
com um preço pago num boleto

Graças a Deus
sou filha, mãe, pai
de almas benditas
que não buscam o favor
de um SUS sem boleto

Graças a Deus
tenho meu trabalho
sem direitos antigos e danosos
que só usurpavam o patrão

Graças a Deus
sou filha, mãe, pai
De almas benditas
que contribuem para o progresso
da nação e do patrão

Graças a Deus
eu posso aplaudir a injustiça
que não serve em mim
mas cabe aos maus que odeio

Graças a Deus
sou filha, mãe e pai
de almas benditas
que aceitam, aceitam, aceitam
e que a si e aos outros odeiam.
Gratidão.

segunda-feira, 1 de julho de 2019

quarta-feira, 29 de maio de 2019

Fogo fátuo


Que o amor machuca logo percebeu. Ainda menina, ao abraçar o tronco de uma árvore, teve seus bracinhos queimados por dezenas de taturanas ardentes que ali dormitavam, antes de sua metamorfose alada em futuras mariposas.
As lágrimas que escorreram em seu rosto eram de dor e mágoa
A mãe ralhou que agora aprenderia a não se dar a afagos incomedidos.
Logo cedo aprendeu, a duras penas, que um abraço de amor pode queimar.
Aprendeu e aprendeu... Aprendeu a deixar-se queimar.




Foto : Sérgio Larraín

Não voltes...





Não voltar
Era um medo
Uma constatação
Um desejo

A batida do portão
veio ressoar, a ferro,
o atraso desse medo,
 e, na vaga presença,
um desejo insatisfeito

Esperou dentro da escuridão
da casa e de si...
Quis e não quis
ouvir outra vez
o retinir desse portão...





sábado, 4 de maio de 2019

Deus na multidão

Pelas calçadas degradadas,
a vida desgraçada.
E os saltos vão, desviam,
titubeiam diante de olhos
que não desviam

As pernas sobre eles
não têm mais
o vigor de outrora,
que avançavam
a passos largos
àquela esquina do amor

A idílica estátua é velha
em frente à velha Faculdade
sem juventude alguma
Os jovens viraram
velhos e ausentes

E os olhos pousam
em edifícios feios
que escondiam, antes,
aventuras e irreverências
de estudantes

Não há hoje o antigo
Tudo se tornou novo
e tão velho
Descorado,
sem sentido

Sem sentido o viaduto
por sob onde os carros
enfileiram as mesmas filas
sem alegrias,
apenas filas

Não existem também
aquelas ciganas
com suas saias
a colorirem os caminhos
e prometer-lhe destinos

O destino também se foi.
Foi-se a cidade
tão querida, tão pulsante,
tão amorosa
cheia de tantos amores

Os amores se foram
com esse tempo
que leva
cimento
e sentimento

Porém, ainda resta
uma réstia
da mesma solitária
caminhada
assistindo à vida
presente que passa.

Para. Para
automaticamente
diante de um velho poeta,
um cidadão que lhe conta
que Deus está aqui e agora,

que nunca O vemos
e Ele se entristece,
andando invisível
nas ruas tristes
e sonoras.

Mas  nesse barulho há,
empoeiradas, música e poesia:
Etta James, Oscar Wilde
transgressoramente
se apresentam

na esquecida prateleira,
da banca de jornal esquecida
em que brilha o sol redondo
sobre os  compact discs
em meio a capas antigas.

Há uma alegria
nessa transgressão.
Dez reais e ela sorri,
poesia e música nas mãos,
um verso de si em si

O velho poeta
tinha razão:
Deus ficou mais feliz
e caminha sorridente
na multidão.

quinta-feira, 2 de maio de 2019

Se dá um riso, dá abrigo*





Hoje fui chamada de puta por um menino de rua. Ele vinha dentre vários meninos e se sentiu ofendido ao me ver mexendo na bolsa para guardar o celular. Disse que não queria me roubar, "sua puta".
Mal sabia ele o que defendo. Mas eu tive medo, sim, que eles pegassem o celular de minha mão. E essa realidade de todas as agressões sentidas por ambos me deixou muito triste, neste país que passou a ser só tristeza.
Dez passos à frente, um estrangeiro, uruguaio, maltrapilho, vendendo arduamente suas miçangas me presenteou com um anel de lata e o direito a um pedido e me disse gentilmente que eu era uma linda brasileira, a mais bonita brasileira. Só porque fui gentil em parar para ouvi-lo.
São tão simbólicos esses acontecimentos!
As crianças e estrangeiros, os pobres em geral, tão abandonados que um gesto pode ser um afago ou uma facada. Tudo é abandono, todos nós em abandono.
Eu queria ter dito palavras gentis ao menino que me chamou de puta...

*Referência à música Cruzada, cantada por Beto Guedes; nela, era o beijo dar abrigo...Que tudo seja motivo de abrigo

quinta-feira, 28 de março de 2019

Comboio da Liberdade

Logo após o sim, virou-se  e caminhou para a porta. Ainda parou no meio da nave a retirar os sapatos de altura inadequada para esse voo.
Trespassando a barreira dos olhares estupefatos da plateia, correu em direção à porta de saída da igreja...
Bem mais tarde, alguém na margem da estrada veria seu rosto esparramado  contra o vidro da janela do ônibus a olhar o céu. Pode ser que esse alguém, embriagado da visagem, viesse imaginar ser ela  mais uma indo juntar-se a longínqua revolução.
Nem suporia da revolução já instalada, tão perto, a mudar a antiga ordem posta naquele coração que passava, voltava a pulsar e tremia como a flâmula ao vento voando no veículo, que sumia no horizonte da estrada.
A única certeza que havia para ambos é que aquele que lá se ia,  destino afora, era o tal comboio da liberdade.

sábado, 16 de fevereiro de 2019

Sinto Falta





Sinto falta de Hilda
Sinto falta de Arthur
Gabriel também não anda 
anunciando o ar de sua graça
Violeta foi pro céu
Mario pousou longe, passarinho
Pablo virou cantiga de todos
Sinto falta de Adélia 
E da doçura de Cora
Olho pro céu e sinto o bafo do inferno 
na pedrinha no meu pé
Sinto falta de Júlio
Sinto falta do riso triste de Moacyr
Da dívida de vida de Clarice
Sinto falta de letras ágeis 
a me surpreenderem 
do meio de um be good
Sinto falta de Paulo
Sinto falta, sinto falta
Sinto falta de um país
E de um calado sabiá
Sinto falta de Gonçalves
de Alves, Álvares, 
Carolina, Cecília, Bruna 
De você, de mim
José, Carlos, Pilar
sinto falta de sonhar.

quarta-feira, 6 de fevereiro de 2019

Maria das Dores, abençoada.


De repente, ela sentia a dor conhecida, 
tal espasmo vindo do mais fundo de suas entranhas, 
embora no seu corpo carne essa sensação não se fizesse presente
nem no ventre, nem nos músculos a expulsar um feto.
Ela paria, agora, um outro filho, 
esse gestado em um continuado sentimento, todo dia fecundado, todo dia, 
desde aquele encontro do inaugural contato de olhos, 
desde os abraços renitentes de ninar e proteger, 
da boca a sugar seu leite de mãe, 
desde o ensinar os passos de andar...
Ela paria novamente. 
Era a dor conhecida do parto, 
do espanto da vida a revolver e renovar. 
Da mãe do filho nascia a mãe do pai.



(Foto via Mia Couto)

quinta-feira, 31 de janeiro de 2019

Gerúndios

A gente ia andando, estando, olhando...
A gente queria e queria mais.
Ficava horas juntos
e sempre era o começo.


segunda-feira, 28 de janeiro de 2019

Sobre Minas, sobre lamas, sob lamas, Minas.

Quando retornei a Minas, depois de anos de ausência, fui numa viagem de encontrar com minhas raízes,  tão necessitada me via de bases essenciais. Foi no ano em que o Brasil sofria o golpe de Estado, com o rompimento da jovem democracia pela deposição da presidenta eleita, Dilma Rousseff.


Achei a Minas que buscava, com seus causos, sabores, suas horas lentas, seu povo desconfiado de olhos à espreita. Era a Minas da paisagem generosa, do deus céu Urano deitado  sobre Gaia, em sua cópula infinita, nas curvas montanhosas e belas da mulher terra. 


E havia aquele ar da tristeza natural e reservada de Minas, engendrada nos sorrisos furtivos, na contradição da riqueza a um tempo explorada e emancipadora das cativas liberdades,  da terra de cujo ventre sempre jorrou, mítica e esperançosamente, a magia do nascimento de reinados improváveis de Chicas e Chicos.


No entanto, coabitava a outra tristeza, a não natural, a advinda dos efeitos do desastre terrível de  Mariana, lavada pelas ondas assassinas da ganância do capital. Ainda assim, resistia a resistente Minas...


Na segunda viagem, voltei a Minas a buscar elementos de guerreira, indo pela trilha dos heróis martirizados da Inconfidência Mineira, para ouvir a voz insufocada dos vencidos. Encontrei  os rastros dos escravos, heróis inominados, e da dívida que não se paga... 


Num ano tão amargurado, em que o que há de pior da vilania tomou nosso país, a Minas revoltosa surgia como um necessário berço a dar nortes à minha alma desalentada. 


E foi a força da História, da natureza, das pedras, dos minerais quem me recebeu em Minas. Quanta montanha subida, quanta água de cachoeiras e batismos, quanta rocha esculpida a olhar com seus olhos seculares de profeta! 


Mas no caminho, sempre, como a pedra incompreendida do taciturno poeta, havia a Minas  revolvida pelas mineradoras e as linhas de trem, e um nó no peito de saber de nossa riqueza se indo de nossa pátria, sem obstáculos..


No dia em que o tirano tomou o poder, houve um silêncio macabro, um grito de esqueletos, que dizia "Por que de novo? Por que de novo?".


Veio então a resposta, eivada de toda a tragédia que circunda a ganância e o dinheiro,  num  reiterado estrondo, numa massa de lama varrendo tudo,  soterrando vida, História, sonho, a beleza e a força de Minas, os ecos proféticos de suas montanhas ...  A resposta  veio abusada dizer "foi pouco.".


Hoje, de novo, há lama sobre Minas, fruto da derrama sangrenta de um Brasil que abafa qualquer prenúncio de sua liberdade. Há lama sobre Minas. 


Porém, algo que vem das entranhas me diz que há Minas, há Brasil sob a lama, e que há heróis sufocados por pó e medo em nós.


Pois que esses heróis emerjam, porque se o sinal de salvação das vidas sacrificadas pela barragem não foi soado, outro tocou e vem deixando seu claro aviso:  não há pilares que sustentem mais nenhuma espera, e o único caminho de respirar se apresentou. E precisamos urgente respirar.