Para quem não viu o filme Ainda Estou Aqui, de Walter Salles, porque não tem interesse pelo tema da ditadura, posso dizer que o filme me surpreendeu justamente pelo tema tratado ali, que é o afeto. É um filme de amor.
O título das obras (filme e livro) são reveladores da ausência que nunca acaba ou da inextinguível presença que não se confunde com saudade. Essa ausência, esse estado de sem corpo abrupto e eterno que a Ditadura impôs a tantas famílias, retirou lhes até isso, o direito à saudade. Vagam todos na eterna espera de não se sabe o quê.
O assunto do filme seria mais uma canção em nossos ouvidos sobre a chaga aberta da Ditadura, se não houvesse nele, talvez, o olhar genial do diretor Walter Salles em pura empatia com o sentimento do autor do livro, Marcelo Rubens Paiva, conseguindo retratar, com delicadeza, assunto tão árduo sem lhe retirar um pingo da seriedade e importância.
O filme, em suma e ao que parece, conseguiu transpor a porta blindada da naturalização dos anos de chumbo feita pela mídia e pelo poder dominante, que criou um falso distanciamento de nossa realidade contemporânea com aquela realidade brutal que o pais viveu por décadas. Como se todo o horror tivesse sido ou pudesse ser esquecido pelo país e suas novas gerações.
Se os golpes de Estado recentes, consumados e frustrados, mostraram que a apresentação da verdade sobre a Ditadura não conquistou as mentes, a ousadia obstinada do filme perverteu essa dinâmica ao se apresentar com a coragem de conquistar corações, em terras tão cevadas pelo ódio.
Isso se dá quando o filme coloca a vida, os afetos, as relações comuns de uma família como outra qualquer sendo estraçalhadas pelas botas cruéis e assassinas da ditadura, por agentes sem nome e de caras feias, por dores de suplícios corporais e emocionais das torturas físicas e mentais, e tudo sem qualquer motivo explicável. A flor contra o canhão.
Quem, mesmo não sendo militante político ou sequer tendo nascido naquela época, não se viu representafo naquela família de almoços de domingo, de um pai trabalhador e amoroso, de um marido atencioso, de uma mãe alegre e viva, de irmãos e seus risos e rusgas infantis, de animais de estimação adotados?
De repente, essa "sua" família é assolada por uma violência totalmente desconhecida de sua realidade. E tudo fica escuro no filme e dentro do peito e todos não têm como não perceber que a Ditadura é essa escuridão.
Que falta fazem aquele pai, aquela mãe, aquela família que já não somos! O personagem de Selton Mello, o Rubens Paiva, macio com seu porte bonachão, sorriso e olhar inocentes, não sai de dentro de nós, está o tempo todo presente ausente. E nós viramos a mâe, nós viramos Eunice a esperar sabendo que não terá fim essa espera.
É muita identificação!
Esse filme é imprescindÍvel por esse chamado, esse esclarecimento não apenas dos fatos particulares e reais daquela família e do "fato da sangrenta Ditadura" que nos assolou por tantos anos, mas o é principalmente por fazer brotar, a partir do sentimento, do afeto, a repulsa genuína e incontornável por tudo o que é autoritário. Ninguém consegue ousar defender ditadura depois desse filme. Talvez somente eles, os Ditadores execráveis de sempre.
E, por tudo isso, é bom ver que as salas são tomadas por muitos jovens e que as lágrimas, que são inevitáveis seja pela lembrança, seja pelo inédito conhecimento dessa tristeza, seja pela beleza que se torna feiúra, seja pela beleza da história narrada e encenada, são agora uma força comum e compartilhada.
A gente sai da sala de cinema com uma fome de abraços e de Democracia, convictos de que levamos a marca inevitável que nos identifica: ainda estamos todos juntos aqui e ditadura nunca mais. Entenderam?
Maria Angélica Taciano
#aindaestouaqui#oscar2025
Nenhum comentário:
Postar um comentário