sexta-feira, 12 de dezembro de 2014
A poesia e o lápis.
Quando menina, jogava o jogo do “o que gostaria de ser”. Um
falou que seria cão, outro, um passarinho, outro seria super-homem. Mas um, bem
baixinho, disse:
- Quero ser lápis.
Ela que nem decidira pensar em que ser, arregalou os olhos para
aquela resposta “um lápis”! E, rápido, respondeu:
-Eu quero ser poesia.
Desde então, sempre a procura, a poesia, a saber como ser
poesia.
Enquanto isso, ele a escreve e escreve e escreve...
sábado, 8 de novembro de 2014
Salmo 0
Salmo
0
“Todo mundo tem um dom. O grande pecado é trair seu dom.”
João Ubaldo Ribeiro
Não
orientarei sentimentos, indicando portas por que devam entrar ou caminhos que
devam evitar.
Trago
sentimentos do mais livre arbítrio, que vivem do seu sentir ou, se não,
recolhem-se, inteiros, em silenciosa verdade.
sexta-feira, 7 de novembro de 2014
Gênese
Havia perdido as certezas. Eram já poucas as que tinha, mas agora acabava de perdê-las de vez.
Tentou explicar o fato à mulher que, distraída com sua revista, perguntou-lhe a pergunta fatal:
- Quais certezas?
E, subitamente, ele se viu caindo uma queda sem fim nem começo numa espécie de buraco negro de ideias. Descobria, então, se descoberta se pudesse chamar, que suas poucas certezas, ali, sempre a seu lado, tornaram-se absolutamente indistinguíveis, indecifráveis. Não sabia se, sequer, chegaram a existir. A própria inexistência também se lhe apresentava duvidosa: inexistiriam as próprias certezas em sua existência material ou inexistiriam em sua existência ideológica?
Por costume ou por uma espécie de atavismo trazido da convicção das certezas ainda que parcas, iluminou-se nele, em lampejo, um certo alívio ou um quê de contentamento ao supor que fossem talvez suas certezas como uma deidade a quem ninguém define ou prova a existência, mas sabe que, de alguma forma, ela é.
Sim, eram esses os sintomas do insondável existir de suas certezas, por isso tão poucas. Talvez, nem fossem poucas, mas uma única, onipresente, onisciente certeza.
Por algum momento, aquela certeza já ausente, assentada tão somente em um fio de sua lembrança, passou a ter uma forma estelar, universal e transcendental.
O homem olhou-se no espelho com tamanha e irreconhecida firmeza, seus olhos brilhavam com a luz da descoberta, do autoconhecimento e do alto conhecimento. Estava quase em estado de êxtase existencial e tudo a seu redor pareceu menor: a revista, a mulher, a imagem refletida no espelho, o livro fatídico aberto no colo...Era um deus a levitar.
Porém, deleitando-se nesse território divino, algo lhe pareceu estranho. Pois se suas certezas tão indecifráveis o jogavam em um plano de divindade, elas de fato e inexoravelmente o tinham abandonado, uma vez que o suporte do divino é a crença e esta, por mais encravada que seja, é essencialmente feita do barro da - e a palavra lhe saiu quente e caudalosa como lava de vulcão - dúvida.
Num átimo, percebeu que, na verdade, estava a enaltecer mais a memória falecida da ausente certeza do que a tragédia de sua perda e, diante dessa constatação, operou-se, enfim, o completo preenchimento de seu vazio por toda dúvida.
E naquela noite, como nunca havia feito, dormiu um sono solto, largado, embalado na sua entrega de nada ter de saber ao certo. Enfim, apenas não tinha certezas.
Talvez, quem sabe, o dia seguinte amanhecesse.
Tentou explicar o fato à mulher que, distraída com sua revista, perguntou-lhe a pergunta fatal:
- Quais certezas?
E, subitamente, ele se viu caindo uma queda sem fim nem começo numa espécie de buraco negro de ideias. Descobria, então, se descoberta se pudesse chamar, que suas poucas certezas, ali, sempre a seu lado, tornaram-se absolutamente indistinguíveis, indecifráveis. Não sabia se, sequer, chegaram a existir. A própria inexistência também se lhe apresentava duvidosa: inexistiriam as próprias certezas em sua existência material ou inexistiriam em sua existência ideológica?
Por costume ou por uma espécie de atavismo trazido da convicção das certezas ainda que parcas, iluminou-se nele, em lampejo, um certo alívio ou um quê de contentamento ao supor que fossem talvez suas certezas como uma deidade a quem ninguém define ou prova a existência, mas sabe que, de alguma forma, ela é.
Sim, eram esses os sintomas do insondável existir de suas certezas, por isso tão poucas. Talvez, nem fossem poucas, mas uma única, onipresente, onisciente certeza.
Por algum momento, aquela certeza já ausente, assentada tão somente em um fio de sua lembrança, passou a ter uma forma estelar, universal e transcendental.
O homem olhou-se no espelho com tamanha e irreconhecida firmeza, seus olhos brilhavam com a luz da descoberta, do autoconhecimento e do alto conhecimento. Estava quase em estado de êxtase existencial e tudo a seu redor pareceu menor: a revista, a mulher, a imagem refletida no espelho, o livro fatídico aberto no colo...Era um deus a levitar.
Porém, deleitando-se nesse território divino, algo lhe pareceu estranho. Pois se suas certezas tão indecifráveis o jogavam em um plano de divindade, elas de fato e inexoravelmente o tinham abandonado, uma vez que o suporte do divino é a crença e esta, por mais encravada que seja, é essencialmente feita do barro da - e a palavra lhe saiu quente e caudalosa como lava de vulcão - dúvida.
Num átimo, percebeu que, na verdade, estava a enaltecer mais a memória falecida da ausente certeza do que a tragédia de sua perda e, diante dessa constatação, operou-se, enfim, o completo preenchimento de seu vazio por toda dúvida.
E naquela noite, como nunca havia feito, dormiu um sono solto, largado, embalado na sua entrega de nada ter de saber ao certo. Enfim, apenas não tinha certezas.
Talvez, quem sabe, o dia seguinte amanhecesse.
quarta-feira, 8 de outubro de 2014
VIP

não sendo,
ser até um pouco sua
que não faço da liberdade
um mote de protesto,
ao contrário,
ela é um modo de ternura
E que só na sua cabeça,
que tão débil me contesta,
meu amor alardeado
e essa febre de viver
não têm grife e compostura
e não entram na sua festa.
quinta-feira, 2 de outubro de 2014
Avesso
em quase nada, admitiam.
Mas inexplicável tamanha vontade,
aquele querer entorpecente
de um com o outro descombinar.
domingo, 14 de setembro de 2014
Vento do Norte
segunda-feira, 8 de setembro de 2014
Um Homem que não se chamava Baudelaire” (*)
Para você, com carinho.
"Às
vezes, me sinto muito só. Sem ontem e sem amanhã. Não adianta que haja pessoas
em volta de mim. Mesmo as mais queridas. Só se está só ou acompanhado, dentro
de si mesmo. Estou muito só hoje. Duas ou três lembranças que me fizeram
companhia, desde segunda-feira, eu já gastei. Não creio que, amanhã,
aconteça alguma coisa de melhor."
(O
diário de Antônio Maria)
Por
que Antônio Maria, se você e ele aparentavam temperamentos tão distantes? Ele, um
homem popular, falastrão, cheio de amigos. Você, um cara reservado, de palavras
poucas e precisas. Quase nada popular.
Ardia
em ambos, contudo, a identidade no refinamento do humor, na extrema sagacidade
e na profunda solidão, a solidão, esse rio manso, de águas escuras e fundas em
que poucos ousam mergulhar.
Você
sempre citava Antônio Maria, mencionando suas crônicas esportivas, sua
inteligência, a beleza de sua música, seu bolero. Você dizia de Antônio Maria
para dizer de si mesmo. Nele você se revelava e, em você, ele se ocultava.
Homens lapidados na noite, na boemia e dotados de extrema poesia por vezes incompreendida, as duas figuras tiveram o melhor de
suas vidas cantadas por terceiros, denunciantes encantados. Muitos destes forjaram suas
próprias histórias a partir dessa magia.
Completamente
amplos no sacrifício pelo amor - um deixou-se
devorar pela vida, e o outro, pela morte - partiram em plena elegia à sua
solidão. Nem a derradeira despedida serviu de motivo bastante para romper esse
pacto.
Porém, a sua arte da vida não é como a de Maria, que se imortalizou no merecido
reconhecimento da matéria de sua estética. Não, a sua arte reverbera como um
eco e como tal vai-se alastrando, perdendo sua força e contorno até
emudecer...
Mas há
algo nela que sobrevive por si, e em algum ponto, sem o compreender, ela é
vivida, doída, captada num brilho fulgurante de olhos de menino como foram os
seus até o fim. E, inusitadamente, um silêncio é rompido com um afinado e muito
familiar assobio que sopra uma pérola musical do melhor repertório de amor dos
anos 50, extraída “diretamente da Rádio Tupi”:
“Ninguém me ama,
Ninguém me quer,
Ninguém me chama
De Baudelaire.”
E a saudade vem como ondas de rádio.
E a saudade vem como ondas de rádio.
(*Referência aos
versos do samba-canção “Ninguém Me Ama”, de Antonio Maria e Fernando Lobo)
quinta-feira, 4 de setembro de 2014
De amores e espumas
"- Para você, como se manifesta o amor?
Foi esta a pergunta que ela lançou a ele, assim,
de repente, de frente para uma caneca de chopp. E ele, meio sem jeito, esforçou-se
para responder, buscando inúmeras palavras que carregavam muito mais sentimento
do que significado. A explicação, coitado, foi uma catástrofe, porém, havia
muita verdade naquele seu não dizer.
Ele a amava muito mais do que ela imaginou até ali.
Ele que nem era bom com palavras e que odiava essas demonstrações de “sentimentalismos” estava diante dela,
tentando exprimir-se, esforçando-se para alcançar aquela mulher
de temperamento tão singular.
Ela não ouviu metade das palavras ditas e, mesmo
assim, aquele gesto tão verdadeiro e esforçado fez com que brotasse
nela um remorso infinito: trazia consigo um indisfarçável regozijo de
vê-lo daquela forma, finalmente, sangrando.
E quanto mais ele dizia e vasculhava seu limitado vocabulário,
mais absorta estava ela em busca das palavras bem colocadas que não revelassem
a ideia exata de amor que bem conhecia dentro de si, que talvez jamais tenha
dedicado a ele e cuja definição, certamente, ele também lhe cobraria em contrapartida à sua inicial pergunta. Achou, enfim, a palavra certa e definitiva – era boa nisso - e então, por alguma espécie de amor, mentiu."
(trecho das crônicas "Luas de Sabina"; Maria Angélica Taciano)
sexta-feira, 22 de agosto de 2014
Despida
Não é de roupas que
eu me dispo
O que me faz nua é a
minha história,
verdade meio duvidosa
de crenças que
carrego,
o meu medo de fantasma
e do atraso de minhas regras.
A minha nudez
escancara (sem vergonha)
a minha coragem
e a insegurança infinita
e a insegurança infinita
de ter feito alguma
coisa errada
e ficar pensando mil
modos
de sobreviver depois
das perdas
Já meu nu não tão exposto
anda muito além do
que mostra,
vem de uma louca
mistura,
de dores, alegria, revolta
Tem a força das
grandes lutas
e a fragilidade da derrota.
Eu confesso que sou
nua,
se estou cambaleante,
à beira do precipício,
por um amor, uma dose
a mais
de whisky,
de whisky,
porque o telefone não
tocou.
Sou nua no desespero
assumido,
assumido,
no feminino da
insensatez,
nua na teimosia
de
começar tudo
outra vez.
outra vez.
Não é de roupas que eu me dispo,
se quer mesmo minha nudez.
Ela não se faz de despojos
de saias, meias, sapatos,
de saias, meias, sapatos,
calcinha,
corpo lasso na cama.Para ter minha nudez
sem segredo
há de ter uma certa empatia,
ser meio fêmea pelo
avesso.
Seguir, mesmo com medo,
por ruas desconhecidas.
Então, ainda uma vez, eu lhe mostro:
não é de roupas que eu me dispo.
Apenas sem roupa,
sou apenas uma mulher
sem roupa,
que depois que ama se
veste,
fecha a porta e vai.
Esquece.
Esquece.
quarta-feira, 13 de agosto de 2014
Natureza Viva
Queria ser fotografada
por um fotógrafo
que tivesse, em vez de máquina,
o coração na mão sua.
Mas não
Não sei se me deixaria revelar
dessa maneira,
assim tão nua.
por um fotógrafo
que tivesse, em vez de máquina,
o coração na mão sua.
Mas não
Não sei se me deixaria revelar
dessa maneira,
assim tão nua.
sexta-feira, 25 de julho de 2014
História Fora de Linha
Nossa história daria muitas linhas, mas preferiu seguir pelos
vãos. Sem beijos apaixonados e o êxtase dos encontros abrasadores, nossa
história se fez de mensagens subliminares, na fala de músicas, nos lampejos de
um olhar que se fixava quando o outro já partia.
Nossa história aconteceu num movimento de gangorra, no
intervalo tumultuado de dois trens que se cruzam. Cores veladas de um retrato em preto e
branco.
Nunca foi coisa de inventos como as grandes e loucas paixões.
Andamos todo o tempo em busca de uma simples descoberta para chegar a um ponto
de encontro, no meio da confusão polissêmica de nossos sentidos.
Impulsionados pelo potente motor do querer, hesitamos
desorientados pelas orientações da dúvida. E mantivemos, um pro outro, tumular
segredo de nós mesmos...
Tardias epifanias revelarão, do subtexto de nossa história, o
que dela foi bom ou ruim? Quem sabe?
Nossa história foi, assim, uma literatura de entrelinhas.
terça-feira, 1 de julho de 2014
CILENE (in "Luas de Sabina")

Ela, Cilene, sabe que é uma das figuras retratadas
no psicodélico cenário. E, no entanto, em seu coração, mesmo representando uma adaptada
caricatura das expressões aterrorizadas da tela de Picasso, sente-se inteira e,
estranhamente, ela mesma. Cilene era parte do cimento e desarranjos e exclusões
e belezas do centro da cidade de São Paulo. Ali era seu lugar.
Como havia tempo ainda para bater seu ponto na
empresa, resolveu parar para tomar o café da manhã, num bar que dava de frente
para a Bolsa de Valores. Ali, mesmo sozinha, não se sentia solitária como o
fora em toda a sua vida até aquele ponto. Tudo parecia em mudança e tinha certeza de que gostaria delas, apesar de bastante assustada com isso.
No bar, a garçonete dirige-se à Cilene sorridente,
mostrando familiaridade com aquela pessoa que era presença habitual nas manhãs
:
- Café com espuma do leite, não é, senhora?
Cilene sorri e acena que sim e aguarda quieta, com o
pensamento, olhos e alma distantes.
- Sabe que a senhora tem um admirador, aqui? Ele diz
que se parece com artista de filme americano antigo. Sempre repara a senhora...
Cilene desperta assustada e olha ao redor a fim de
descobrir de quem se trata.
- Ele já foi embora.- diz a garçonete –, mas vem
aqui todos os dias tomar café também.
Mais tarde Cilene se lembraria dessa conversa e
perceberia que tudo aconteceu tão alucinadamente que nunca veio a saber quem
era esse tal admirador. Ficaria na saudade, na lembrança de bons tempos... "
(trecho do romance "As Luas de Sabina"; Maria Angélica Taciano)
segunda-feira, 16 de junho de 2014
DIÁFANA
Vejo você debruçar uma braçada de margaridas sobre a pia da cozinha. Eu, sentada e calada, fito suas mãos grandes tratarem com tanto cuidado aquelas flores em espera.
Meu olhar viaja pelo contorno de seus braços morenos, seu pescoço, seus lábios bem desenhados, o prateado de seus cabelos. Eu havia me esquecido de quanta beleza há em você.
Meu olhar viaja pelo contorno de seus braços morenos, seu pescoço, seus lábios bem desenhados, o prateado de seus cabelos. Eu havia me esquecido de quanta beleza há em você.
No quase silêncio da cozinha, sinto o afago morno da sua presença misturado ao odor fresco das flores e ao barulho da água preguiçosa enchendo o pote. Você sussurra algo parecido a uma canção... Rompo esse quase silêncio e falo laconicamente de algum fantasma que me aflige, como costumava fazer, de menina, rodeando-a em seus afazeres, ali, na mesma cozinha. Você, como de costume, ralha comigo: " - Deixa de bobagem, Maria Angélica!", fazendo pequeno o medo que você toma de mim para si. Baixo a cabeça, em sinal de acolhimento, e ponho, em meus cabelos, uma margarida perdida das outras. Você, generosamente, me dá um olhar de aprovação que se demora entre nós e eu me lembro, também, de como seus olhos são tão verdes!
O ritual do arranjo está quase no fim. Você recolhe o último ramo da pia e o coloca na posição mais precisa do buquê. Singelo, perfeito! E eu me lembro de como suas flores arranjadas eram de uma delicadeza sem igual. Nunca soube fazê-lo com tal mestria. Sorrio e você me sorri por detrás de seu vaso.
Antes que você divise a porta da cozinha levando a sua obra para outro lugar, eu fecho os olhos para manter sua imagem em minha retina. Sei que você não voltará...
Antes que você divise a porta da cozinha levando a sua obra para outro lugar, eu fecho os olhos para manter sua imagem em minha retina. Sei que você não voltará...
Abro os olhos, você se foi. Perdura, em meus pulmões, o aroma de suas flores, trago a margarida nos cabelos. Há um rastro vermelho de sol no céu, um silêncio de se ouvir só as cigarras... As coisas de novo como devem ser...
Enxugo fios de água no meu rosto, respiro e retomo o caminho da minha vida com a renovada certeza de que você está sempre perto de mim.
Enxugo fios de água no meu rosto, respiro e retomo o caminho da minha vida com a renovada certeza de que você está sempre perto de mim.
(16.06.2014)
quarta-feira, 4 de junho de 2014
DIÁRIO DE UMA PUTA AMOROSA
Com X houve um tempo de perfeição
que se foi com a paixão perdida
Restou apenas um prazer
feito de ternura, corpo e memória
Dança diáfana de luxúria,
sendo de apenas um
o resgate de uma história
Ele não notava: ela não estava ali.
Com Y, homem socialmente enquadrado,
o sexo era forte
de macho esfomeado.
Ele a penetrava com vigor
Ela lhe entregava os gemidos
Papéis cumpridos.
Ambos sabiam: ela não
estava ali.
Com W o prazer era quase autêntico
feito de anos e poucas certezas
A carne trêmula, o corpo em exaustão,
amor devotado oferecido em bandeja
Ora ela se servia, ora não
Um deles percebia: ela nem sempre estava ali.
Com Z, por fim, sempre o desencanto
naquilo em que se buscava emoção.
Como flor que refloresce
na mesma estação,
ela se abria,
semeando, extenuada, a sua poesia.
Ela sempre esquecia: ele nunca estava ali.
Quão incógnitas são as letras
da matemática da vida crua e nua
Pensou
Pois se com letras só escrever se devia...
Fez, então, aquilo que mais sabia
E, ainda uma vez,
sem
pudor,
reescreveu o amor
terça-feira, 20 de maio de 2014
RECEITA DE DOMINGO
Separe um acordar tarde e um sorriso faceiro para o dia; as janelas, abra-as aos poucos e olhe, através delas, a vida andando vagarosa na rua ou nos ruídos vindos da casa do vizinho. É necessário um aroma de café recendendo pelo ar, operando, assim, mil promessas que não serão cumpridas, porque domingo é um prato que é feito de momentos fugidios, temperado só com muito agora. Depois desse preparo, vem a parte mais difícil, que é não deixar o domingo ficar fora do ponto. Para isso é preciso uma boa dose de chamego, muita delicadeza com palavras e gestos e tudo isso regado com uma colher de riso. Se a tiver na despensa, ponha um fio de uma sedução apimentada, na dose certa, para que a iguaria não fique insossa e nem picante demais.
Enquanto o domingo está no forno, é bom guardar silêncios. Curtir uma rede em dupla é uma boa pedida, ler um livro, uma manta no sofá, um bom filme. Há os que preferem ouvir as histórias dos antigos ou o riso das crianças. É ainda domingo...
O domingo pode ser servido quente ou frio. Seja como for, deguste-o como o primeiro dia da vida, o dia da graça, do novo começo. E como sobremesa, mande ver, lambuze-se de amor! Afinal, ao domingo se seguirá a segunda-feira da inevitável dieta.
E se, ainda assim, o domingo desandar, não é de se desanimar: guarde os ingredientes e tente de novo de uma outra vez; só de o experimentar já faz um bem danado para alguma esperança. Tentar de novo é, ao fim, o sabor mais apurado que nos oferece o domingo.
Bom apetite!
quinta-feira, 15 de maio de 2014
Os Fios do Tempo
O tempo que foi tanto de espera
foi deixando de ser espera e virou só tempo.
E, no meio do tempo, o que era tanto
e se fez de tanta espera
tornou-se música distante
para uma dança teimosa,
sem harmonia,
um artista mambembe
no meio da praça vazia.
no meio da praça vazia.
E o tempo em silêncio,
que é seu modo de falar,
conta que nada mais há
que fale de nós, naquele lugar:
do amor vivido, da fúria,
do laço rompido...
Dois fios de vida
largados ao vento,
largados ao vento,
que nunca se encontram,
que têm entre si poeira de tempo
e tempo
que, quanto mais tempo,
é menos tempo.
segunda-feira, 12 de maio de 2014
O Lugar das Respostas
Não acredito que o homem tenha chegado à Lua. Mas
acredito em disco voador e pronto, sem nunca ter visto. Não
acredito em nada que precise ser provado para ser aceito.
Creio nas coisas que já trazem em si sua própria lógica e que,
justamente por isso, nos enchem de improváveis dúvidas,
infinitas.
É impossível não se crer no infinito.
Recado de Colombina
Fala para ele que eu não sou
dessas que se recusam ao que querem ou que dizem “não” com olhos de “sim”, pois
não sou de mensagens sub-reptícias: eu sou da folia, gosto escancarado e ao
sabor do vento e de melodias.
Fala para ele que não é falsa
impressão esse desejo que denuncio em meus trejeitos, que adoro beijo indecente
em fila de ônibus e que sou perdulária nas carícias.
Diga que não resisto a um pedido
de desculpas acompanhado de mãos atrevidas, que invadem por sob minha saia e
tocam com jeito de dono meu corpo que arde, alquimia desesperada de matéria fluida e desejo.
Pode falar que eu me apaixono
fácil, mas que me apaixono fundo e de um modo até ridículo, que elejo música tema,
deixo bilhetes em gavetas e adoto fetiches baratos.
Conta que aceito convites repentinos
de passar o tempo que nem tenho a seu lado, encaro amasso no cinema da sessão
do meio dia, abandono o trabalho e fico a noite inteira, na parte mais imunda
da cidade, sentada num bar, escutando com fogo nos olhos as histórias infinitas
de sua vida passada e futura. (Ah, e eu acredito em tudo, até mesmo que o homem
foi à Lua!)
Fala para ele dessa minha inteira
entrega e como estou louca por ele! Que fique sabendo que, quando ouço sua voz mansa
do outro lado da linha, saio apressada para a rua, isso mesmo, correndo de
salto fino ou de pijama, descabelada e alucinada e só respiro se o avisto à
minha espera, descuidado, como se não se lhe importasse a incerteza de minha
chegada (sempre certa), me enchendo de aflição e vontade.
Mas uma coisa, preste atenção, tem
de avisar certo a ele: diz que é fundamental deixar ser espontâneo e leve,
brisa refrescante da manhã. Diga que, só porque me tem toda, não pode vir tumultuar
a graça indolente do amor, retirando-lhe a alegria com calculadas ausências,
meias palavras e jogos de dúvidas insanas que tornam tudo inutilmente difícil. Para
isso, admito, eu sou muito preguiçosa e deixo o baile... vou pra outra
brincadeira.
quarta-feira, 7 de maio de 2014
domingo, 4 de maio de 2014
CAFÉ DE DOMINGO
Sempre quis do amor
Essas coisas bem simples
Como a alegria indolente
de café da manhã de domingo
nos anúncios de margarina.
Nunca teve esse regalo em sua vida tão real.
Foi com seus amores
passantes
que chegou o mais próximo disso,
desses cafés das manhãs de domingo.
Mas nunca em dias de domingo
e nem em horas da manhã...
(Imagem: Matisse)
sábado, 3 de maio de 2014
PAIXÃO
“- Vem comer, moleque, e larga
desse negócio aí”, gritava a mãe da cozinha
já com ar de cisma com o menino sentado na porta, à tarde toda, tentando
tirar som daquele “pau de música”.
A
flauta a que lhe passaram chamar “pau de música” veio do meio das catanças do lixão e, quando a
viu, branquinha ali reluzindo, não pôde mais deixá-la e começou a soprar e
sentir-se deliciado com o som doce e rouco que saía daquele objeto.
No começo ( e até, no meio também), era um som desordenado, umas notas sapecas saindo como quisessem. “ - Tem de por ordem nessa mixórdia, menino, senão todo mundo vai é ficar louco”, dizia seu Zé do Arrebite, o mecânico sanfoneiro que tocava nas festas de forró lá da vila.
No começo ( e até, no meio também), era um som desordenado, umas notas sapecas saindo como quisessem. “ - Tem de por ordem nessa mixórdia, menino, senão todo mundo vai é ficar louco”, dizia seu Zé do Arrebite, o mecânico sanfoneiro que tocava nas festas de forró lá da vila.
E o menino insistia em por ordem na confusão musical para desgosto da mãe. Preocupava-se a mulher de não ver o filho com os demais, mais ausente do que já era de seu feitio. No coração materno, pulsava um desconforto natural de não perceber, no garoto, as tendências comuns de todo menino: “Moleque sem paixão de brincar não dá boa coisa, não.”
Os sinais de homem que rodeavam os moços, não se evidenciavam da forma naturalmente “animal” nele. Enquanto os demais sonhavam com Brigitte Bardot em pelo, na tela enorme do cinema, era no gemido da flauta que o rapazinho devaneava seus mais ardentes sentidos eróticos. A mãe, de soslaio, só pensava “esse menino precisa de namorada, precisa de uma paixão”.
A teimosia de aprender por ordem nas notas daquela flauta fez nascer um homem com uma mania de reinventar harmonias de amor, que todo mundo, até sem saber, gostava de ouvir. Muitos usaram aquelas canções para embalar tantas histórias apaixonadas.
A flauta mágica do homem sem paixão o levou a muitos lugares. Por sua música cantada e soprada de um jeito simples, o mundo, por sabe lá que razão, amou aquele trovador e este amou o mundo inteiro com suas notas cândidas.

De olhos brilhantes de lágrimas pensava consigo: “pro meu filho, na vida, só faltou uma paixão.”. E fechava os olhos, com as mãos no peito, para beber da música de seu menino...
quinta-feira, 1 de maio de 2014
quarta-feira, 30 de abril de 2014
EXPATRIADOS

E você me diz que eu vivo num exílio
muito próprio e que, exilada assim, vez por outra, parto em busca de um mundo
proibido à procura da ventura que, num sítio permitido, eu jamais alcancei.
Dessa forma, ando no limite do tudo ou nada, expondo-me, sem qualquer rede de
proteção, ...
E dá de a gente só se encontrar nesse
exato intervalo em que um busca o chão e o outro quer deixá-lo. Enquanto eu invento
exílios para me livrar de raízes, você mostra seu cansaço de tanto voar sem ter
para onde voltar. Insisto em tentar mostrar que você já é tudo o que eu adoro,
que não me importo com o homem por vir por aí, mas vejo que segue convicto em
seus planos e metas de se estabelecer, ignorando meu esforço de me desfazer de
todos os limites só para estar a seu lado já.
Na verdade, nós amamos a imagem um do
outro cada qual à busca de seu próprio reverso, querendo no outro justo aquilo que
os dois querem deixar para trás. E, assim, são raros os nossos momentos de
união, quando sofregamente ardemos a chama num jogo de talvez e não.
Às vezes, quando uma lucidez sombria
o abate, com amargura imagina como seria
se não tivesse deixado o seu chão. Para acompanhá-lo em sua desdita, eu lhe digo
que, talvez, fosse você mais feliz, escondendo para mim a dor da certeza de que
eu não."
(Trecho das Crônicas "Luas de Sabina"; Maria Angélica Taciano)
"Para diso"
domingo, 27 de abril de 2014
"Maria Angélica Não Mora Mais Aqui" (*)
Ando com uma estranha saudade de
mim. Não é aquela saudade de alguém que se tenha conhecido e convivido e que,
agora, lhe falta. Não. É aquela saudade nostálgica daquilo que sequer se viu.
Como a saudade de uma história não lida que alguém só comentou.
Nunca senti que eu tenha
realmente existido. A mulher dentro de mim assistia ao desempenho de outras
mulheres – sim, no plural, porque eram, às vezes, várias a cada época.

Agora a mulher de fora se
rompeu e, aos poucos, como uma infiltração que se alastra, vem à tona a mulher
de dentro.
E como ser assim tão nua?
Como será essa mulher, sem defesa, sob os efeitos das reações externas?
Maria Angélica vai-se mudar,
vai ficar solta no mundo...
E vai haver o tempo de olhar
no espelho e constatar a imensa e inexorável verdade: não, Maria Angélica não
mora mais aqui.
* Referência à banda de rock da Vila Madalena SP de mesmo
nome e que fez algum sucesso, nos anos 80.
domingo, 20 de abril de 2014
Só Maria*
E agora, Maria?
Na rede social você não é curtida
Sua crua verdade não é compatível
com o programa da
felicidade virtual
Seus amores se foram
Seu casamento há muito se apagou
Não há mais sexo e desejo, nem palavras de amor.
Os dias são mudos,
as noites, escuras e desertas
Não há amigos e nem histórias para contar;
vivê-las, então,
nem pensar!
Sua suposta beleza está murchando
e seu tempo esgotando
E você olha com olhos aturdidos
e chora sem ombro para se amparar.
Tentou ser outra mulher, mudou a cor dos cabelos
De nada adiantou: o vazio é policromático.
Se enche de perfume e delírios. Pra que?
Não tem para onde ir, nem com quem ir
Ninguém te percebe, a esperança já se finda
E os sonhos quase não os há
Contudo, há o quase, Maria
O que te faz persistir
E você continua, Maria
Sempre sozinha, Maria
Sempre, Maria
Sempre Maria
(* Uma homenagem ao poema “José”, de Carlos Drummond de
Andrade)
sexta-feira, 18 de abril de 2014
Irreversível
Poderia ter sido diferente!
Poderia não ter ligado a máquina
Poderia não ter tirado a foto
Poderia não ter chamado você em meus olhos
Poderia não ter a sede da poesia
Poderia não tê-la reacendido ainda uma vez
Poderia não ter fugido de medo
Poderia não ter aberto a porta à paixão
Poderia não ter respondido à mensagem
Poderia não ter ido ao trabalho
Poderia não ter acordado com vontade da vida
Poderia não ter desenhado os traços de outra história
Poderia não ter duvidado do amor
Poderia não ter casado
Poderia não ter acreditado no amor
Poderia não ter posto minhas linhas em suas mãos
Poderia não ter ficado ao sabor dos ventos
Poderia não ter pego aquele ônibus
Poderia não ter ido à escola aquele dia
Poderia não ter sonhado desde menina...
Mas não pude.
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