quarta-feira, 16 de dezembro de 2020

CRÔNICAS DO ASFALTO : Orgia no Café Zazá


 Enquanto tomava meu café, mergulhada na obstinada leitura de Trópico de Câncer, de Henry Miller, chegou-me aos ouvidos um burburinho vindo da mesa ao lado, em torno da qual sentavam-se apertadamente cinco homens, evidentemente compartilhando seu descanso de almoço na jornada de um dia de trabalho. 

Tal alarido deveu-se à menina do café que, ao servir uma xícara a um dos homens, disse:

- Esta é para o que está apaixonado.

Imediatamente, tiro os olhos da leitura e não os volto nem à mesa vizinha em risos e exclamações e nem ao pretenso cliente apaixonado; deixo, isso sim, meus sentidos captarem a energia do momento e tudo que a evocação da paixão atrelada à transgressão provocativa da menina pôde causar no ambiente. Curiosamente, o desabrido prazer da insinuação libidinosa soa tão insolente no Trópico de Câncer quanto no Trópico de Capricórnio, ainda que neste último a expressão erótica seja um poema decantado como uma rebeldia natural e nua.

A paixão proclamada, imaginada, mesmo não nos pertencendo, sempre passa por nós. Amar, cuja prática costuma ser  tão egoísta, tem em si uma empatia latente. Todo amor que passa na rua, passa na nossa rua, em nosso portão. De algum modo o celebramos.

Foi nesse estado de celebração íntima e coletiva que a menina atravessou a linha de meu olhar de volta ao seu balcão. Durante esse trajeto, lento e translúcido, pude ver seu riso suspeito, descoberto, entregue, seu corpo todo ele iluminado. Vi seu aspecto, normalmente duro de trabalhadora a servir, completamente tornado esguio e curvilíneo como uma calda caindo de uma colher.

Houve um ato de potência erótica em toda essa cena, amor carnal. A menina gozou a suposta paixão no outro, a existente, a sugerida, a imaginada ou a que fez nascer! Gozamos todos - os homens da mesa, a menina e eu - numa mesma e inconfessa orgia e, por breve instante, crua e indecentemente, aquela paixão passou por cada um de nós com seu hálito quente, seguindo para alguma direção que não se ousou definir. 

E de onde veio? Meu café, estacionado na mesa desde os anos 30, atravessando séculos, exalou seus últimos esboços de fumaça nesse fragmento de um tempo em 2018. 

Voltei  para Henry Miller em minhas mãos e nunca poderei  afirmar se, em algum momento, tirei de fato os olhos e sentidos de toda aquela leitura.

Breve momento e a orgia até então instalada deixou o lugar. As contas foram pagas, os homens partiram de volta à sua rotina e,  no café, os sons de louças retiniam das mãos da menina, recolhendo, séria e concentrada, os despojos da festa acabada.

O Café Zazá não resistiu à pandemia de 2020. Fechou suas portas sem qualquer ritual de despedida. 

Junto com ele, foi-se o cinema contíguo, os empregos, os descansos intrajornadas compartilhados  e festivos, a reverência aos apaixonados e tudo o que era arte da vida pairando na dimensão entre tempo e realidade, o que alguns chamam de sonho ou vibração.

No letreiro apagado, agora dormente sobre a porta,  as palavras em vermelho não brilham mais o viajante neon que brilhou por entre dois séculos, como em meus olhos, acendendo luzes e vontades e promessas explícitas: "Café Zazá, o prazer quente de um bom café. Desde 1932".

O corpo do velho Café rendeu-se às incursões da realidade nova e brutal; sua alma talvez resista vagando em exiguas lembranças, páginas de livros, desejos sensuais  já se tornando obsoletos. Talvez resista e insista na existência onírica com letreiros flutuando  numa teimosia sempre acesa. 

Mas do que uma vez ali foi vida, seja o que isso significou para suas bacantes personagens, nunca mais o cheiro quente das fumaças desenhando tempo e desejos sobre as xícaras nas mesas, nunca mais as bocas, sorrisos, falas, caldas escorrendo das colheres para as almas. Nunca mais orgia no Café Zazá.


(Imagem: Dois amantes (Katsushika Hokusai, 1815))




sexta-feira, 11 de dezembro de 2020

domingo, 29 de novembro de 2020

Negativo - Anti você

 



Hoje me vesti do jeito

que você não gostava

O chapéu, o vestido rodado

e os odiados sapatos

a dedos escolhidos


E lembrei dos dedos seus

deslizando em minhas pernas

quando os pés me descalçava 

E sua pele em meu corpo ...

(Disso eu sei que você gostava)


Hoje me vesti desse jeito

toda de você desvestida

E saí inédita, estranha

tão de mim estrangeira

num modo anti-você em mim

quinta-feira, 19 de novembro de 2020

Janela adentro



 No quadro da janela de meu quarto

há um mundo que não descansa

na noite fria em que brilha a lua

pálida de frio


Nesse mundo há as histórias 

que quero pintar nas linhas

deste caderno

com as caras iluminadas

por luzes frias mais que a noite


Mas as caras  que estão nas ruas 

mais claras que a lua fria

Estão no mundo em que não estou

e se apagam das histórias

do mundo nas linhas de meu caderno


E  nem a lua pousada na folha branca  

traz caras a suas histórias

Página cansada que descansa

oca como o quadro de minha janela

que tem o mundo na noite que não descansa




quinta-feira, 12 de novembro de 2020

Partida

 

Era preciso ter a casa como sua

 para, enfim, deixá-la


Não sabia possuir

nada que pudesse ter como seu


Vivia nesse estado de ausência

e das perdas essenciais e comezinhas


Sempre pronta a carregar o adeus

em sua mala de partida

quarta-feira, 11 de novembro de 2020

terça-feira, 10 de novembro de 2020

CRÕNICAS DO ASFALTO

 Sesc 24 de Maio, um mergulho no corpo e alma da cidade...sem filtros.





Fui convidada a conhecer o SESC 24 de Maio, por uma entrevista de um de seus arquitetos à Rádio USP. Quando ele não soube precisar quanto se gastou na obra para responder ao entrevistador, mas quando disse que poderia falar sobre a concepção construtiva do SESC 24, baseada em manter a feição do velho prédio da Mesbla, ressaltando o traço desafiador disso, numa cidade cujo perfil é do apagamento do "velho", da não preservação da memória, de sua História e cultura, do destruir pra começar de novo, pensei comigo " ali tem poesia, tem algo revelador!". E ele poeticamente falou da visão que o prédio oferece da cidade em seu Centro, vendo de cima, pelos vãos, de toda forma, além de oferecer um local de lazer e convivência popular, em região tão carente dessas "delicadezas".
Pois assim, embarcamos no sábado para conhecer o SESC 24 de Maio, que nos abriu as cortinas para uma São Paulo despudorada, nua, mostrando sua rudeza em corpo e alma. E não há como fugir desse exorcismo, asseguro, pois que essa alma de São Paulo pode ser vista tanto pelas janelas, que mostram a cidade excludente, desigual, degradada e rica, mas sempre pulsante, e pode ser conferida na exposição sobre sua História, arte, pessoas, sentimentos...tudo se confundindo com um bocado de cimento nas estruturas construtivas dos prédios e das gentes.
É bonito, ao modo paulistano de ser bonito. E é cru, no modo paulistano de se ser triste ou feliz ou de se ser sabe-se lá o que.



sábado, 17 de outubro de 2020

Procura-se




Procuro um sorriso

não um tal que venha

de minha boca coberta

e que nada revele

além de dentes descobertos


Procuro é aquele sorriso

que se expande dos olhos

escorrendo por alma e pele

reverberando da nuca aos joelhos


Que conte da saciedade

de cama bem dormida

em meu corpo acordado

depois da madrugada

de riso, gozo e vigília.


O sorriso que tenha

um som de terra e chuva

um cheiro de vida e vontade

de amanhãs e de cafés


que brilhe como a chuva

sem esconder que gostou

de sua chegada na roda

a fazer festa escondida

sob a roda de minha saia


Procuro um sorriso

que descanse minha história

no fim da longa jornada

que traga uma réstia de luz

a meu semblante fustigado

como herança de viver


Um sorriso de luz vespertina

que desenhe em minha boca

uma preguiça de rede embalando,

em seu vaivém de memórias,

tudo o que me faz, sorrindo, adormecer.







* Imagem: Foto com Frida Khalo e Chavella Vargas


quarta-feira, 14 de outubro de 2020

Os Encontrados



Tinham tudo para dar certo. O encontro era algo  predestinado, sabiam. 

Apenas não conseguiam transpor os obstáculos à consumação desse encontro.

Era só uma questão de não conseguirem passar pelo mesmo caminho. Não acertarem os relógios. Um pequeno detalhe de não terem as oportunidades e as condições disponíveis. 

Mas sabiam que eram almas encontradas.

Apenas lhes impediam os compromissos quase inadiáveis, o perigo das palavras tão escassas na carestia dos diálogos. Faltavam as vontades às pernas. Faltava a coragem para se vestirem da verdade não inventada e se encararem... 

Mas se sabiam destinos cruzados, só circunstancialmente sem os dedos entrelaçados.

Costas dadas à porta de saída, a bolsa jogada ao sofá, as chaves de novo pousadas na cabeceira, o propósito, o propósito... Apenas um  tanto a mais de paciência era necessário. Encontrados já eram, afinal.

No silêncio de cada sala, a respiração de cada qual tem a mesma exiguidade, e só os vagos  ruídos longínquos, vindos  das ruas de fora, trazem para dentro o que é de fora, o concreto de algum lugar distante de uma outra e outras vidas se fazendo. 

Uma notificação sonora no aparelho  desperta-os do transe da fracassada ousadia. 

Voltam ao teclado como se fosse a primeiira vez. Suas luzes se reacendem, religados, de novo ligados.

Voltam seus olhos às telas, ao amor exato, intocado e de almas encontradas.

As juras da paixão se confirmam, sôfregas e mútuas. O desejo exasperado de novo como todo desejo que espera ansioso pelo momento incerto do futuro encontro.

Paciência era o nome que davam a isso. 

O importante  é que sabiam. E não era pouco: eram mesmo destinos encontrados, nascidos um para o outro.

terça-feira, 29 de setembro de 2020

VIRTUAL E FAKE - UMA HISTÓRIA DE AMOR INACREDITÁVEL






Virtual não era um rapaz como outro qualquer. Sempre contemporâneo, inédito e pulsante,  era aquele que continuamente se recriava, um ser em evolução e reinvenção de si mesmo. Intrigante, exato, lógico, incontido, despertava interesse em todos à sua volta, o que rápido se transformava em fascínio. Virtual era um ser fascinante. um legítimo "trending topic". 

Realmente, vivia na boca, nos dedos e olhos de todos,  era rápido, impactante, antenado com o tempo estando em tudo sem estar em lugar algum. Ele era a tendência, ditava as tendências,  era "o cara".

Começou como um mero trabalhador inovador, oferecendo soluções rápidas para problemas práticos que, até então, se arrastavam entre burocracias, papéis, consumo de tempo nas chamadas "coisas chatas" da vida. Popularizou-se e, dos negócios, passou rapidamente a alterar as interações humanas em todos os sentidos. Esse, indiscutivelmente, o grande salto: a sua influência nas interações humanas foi que fez dele um pop star. E tudo mudou.

Foi dele a transformação das distâncias físicas entre pessoas em proximidades de meras imagens. Por outro lado, as presenças concretas  transformaram-se em ausências mentais. Recriou a linguagem, simplificando (a seu dizer) os intrincados signos linguísticos para democratizar a escrita. E nessa toada, transportou as expressões  das palavras escritas para formas de manifestações quase pré-históricas, dando-lhes uma roupagem de vanguarda, de algo sem precedentes, desenhos cheios de "algo a dizer". E não era só na forma, pois tais expressões não vieram contar histórias ou fatos, longe disso, vieram representar ou substituir os próprios estados psicológicos dos comunicantes ("emotions", "emoticons"). Nem Freud explicaria ou entenderia. E também isso envaidecia Virtual. 

Pudessem asas ser assim tão fluidas, se poderia dizer que, graças a ele, a vida se tornara alada. Virtual  vivia nas nuvens e levava  tudo para lá.

No entanto, num certo dia, porque toda história que se preze tem sempre "o dia certo", Virtual, tão determinante na vida moderna e em seus aglomerados vazios, se viu envolvido completamente por uma arrebatadora mulher, que, sem o admitir, porque isso não era de sua natureza, veio para quebrar tudo. E como quebrou!

Fake era toda sedução, um mistério  que confundia Virtual com histórias desconexas e tão sem sentido que nem mesmo ele, com toda a sua sagacidade, saberia dizer se elas tinham, ao menos, no bem profundo de sua essência original, algum mínimo de verdade.

Mesmo assim, a identidade foi imediata. Como ele, ela estava e não em toda parte. 

A vida de Virtual deu uma guinada de trezentos e sessenta graus. Opa! Então, dessa forma, teria voltado ele ao mesmo ponto. Mas não, necessariamente. Nada com Fake era o que parecia ser; a garota tinha a mania de  dar planeza às coisas circulares. e a guinada de Virtual, no mundo envolvente de Fake, pode  até ter sido em linha reta, numa autêntica negação da razão, da ciência ou meramente dos ditos populares.

Era, assim,  um amor com toda a aparência de uma tórrida paixão. Certeza nenhuma, deixe-se claro, porque da sombra de Virtual e da natural contradição de Fake não se poderia esperar nada de palpável. Tudo era ausência e dúvida.

Mas a coisa poderia ter-se limitado a um insubsistente enredo amoroso, se ambos não tivessem o desejo explosivo de gritar seu amor ao mundo, muito embora, nesse aspecto, a amante Fake preferisse sussurros multiplicados em milhões a gritos retumbantes para geral. Mas, enfim, queria o casal  ser o guia das razões e das sem razões de tudo, ainda que não confessassem isso nem mesmo um ao outro.

Dionisicamente, fizeram a festa: a grande obra era reinventar mesmo a vida.

Virtual pisou fundo, acelerou. Extinguiu os segredos, mudou de lugar as dores da alma, antes apenas gemidas no fundo do peito, e as colocou a brilharem na superfície da ovação coletiva das redes. Se não estivessem nas telas, não estariam na vida. 

E que profusão de falas, gestos. caras, sorrisos distribuindo-se entre as pessoas! E com que velocidade tudo se dava! Rapidez e alcance eram o lema. Nada perdurava, tudo era novo. 

As relações se multiplicaram aos milhões, as opiniões, a autoestima, tudo era compartilhado nesse ambiente etéreo e acessível.  Agir rápido, pensar raso, nadar de novo à superfície. Era o novo tempo.

E no amor? Estando tão assim enamorado de si e de tudo o que amava, Virtual não deixou que sua onda desprezasse esse sentimento tão popular, milenar e tão resistente às mudanças do tempo.

E intimidades tornaram-se públicas, segredos eram compartilhados aos olhos de invisìveis juízes. Os amantes, ao modo desse mundo, virtuais,  não tinham  mais limites aos toques, de dedos em teclados, fotos, filtros, selfies. O sexo e o desejo, adaptados ao sistema vigente, deixaram de ser vividos para ser apenas mal redigidos. Eram orgasmos explodindo em letrinhas desordenadas, bolas de sorriso, olhos de corações, tudo  pulsando na tela, subindo, evaporando e virando nada, em uma, uma centena, um milhão de vezes de nada. E foram libertados os sofrimentos e sofredores, pois o fim de uma história amorosa, sempre a pior parte do amor, também virara vapor.  Inútil tragédia do pobre Werther, narrada por Goethe: bastava uma mensagem visualizada, não respondida, não marcada pelos malditos risquinhos azuis, e pronto!, tudo estaria devidamente incompleto para outro começo.

Apenas na solidão foi que Virtual não mexeu; precisava dela  exatamente como era para pousar esse universo unipessoal. A reclusão dos corpos e ou das mentes era condição para a vida virtualmente plural. 

E Fake?  Ah, essa veio para apimentar tudo isso.

Com jeitinho, convenceu o amado a lhe dar a chave de seu baú, insistindo que era tempo de pequenas reformas nas peças já se tornando obsoletas (usou calculadamente a palavra obsoleta, porque sabia que o namorado tinha pavor à ideia). 

Suscitou uma customização, dar uma outra cara às coisas, muitas vezes esquecidas, desinteressantes, largadas de lado.

Dizia que "fato" e "verdade", por exemplo, estavam bem ultrapassados, desajustados à realidade de  Virtual, nada havendo mais enfadonho do que um fato como exatamente era e verdade escancarada. 

Verdade era, então, uma chatice verdadeira (e nunca saberemos se aqui ela se teria valido realmente de um trocadilho).  Segundo Fake, era um item pesado que consumia demais as moedas de Virtual. A "verdade" acabaria por empobrecê-lo, esvaziando seu sucesso. E enfatizava, com sua capacidade discursiva de curtíssimas sentenças, que as pessoas estavam a mil e ninguém estava ali para ouvir até a segunda parte... 

Virtual achou graça da ingenuidade aparente da menina. Deixou o barco correr.

Não demorou muito para que Fake se tornasse tão popular quanto o amante, modificando quase tudo o que ele construíra. E ela foi tomando posse e  porte, ficando totalmente independente. Fez amizades só suas, empoderou-se, entrou de cabeça, militou nas grandes questões do mundo. Era solicitada por figuras e arranjos muito influentes. 

Realmente, sua meta era a mudança, a invenção de um, de vários mundos. E Virtual, gradativamente, foi perdendo a ascendência sobre ela e, ao fim, até sobre si mesmo. 

Como Virtual, Fake está hoje em toda parte. A dama se tornou um enigma. Gosta das sombras e de andar em grupos esquisitos. E cobra muito, mas muito caro por seus produtos.

Comenta-se um certo ciúme da parte dele em relação ao sucesso de Fake, o que tem feito de ambos não exatamente um par, mas quase concorrentes. Vez por outra, no entanto, Virtual e Fake frequentam os mesmos ambientes e saem das festas, risonhos, de mãos dadas como uma dupla amorosa perfeita.

Se  ainda há  ou se, de fato desde o início, houve amor de verdade entre Virtual e Fake,  a essa altura de suas existências ninguém mais sabe dizer. Sabe-se apenas que Virtual anda mal, porque descobriu que Fake está de caso com Ódio, um cara bem real.



domingo, 20 de setembro de 2020

Compassos












Tento enfiar-me nessa roupa

Que não me cabe  e me aperta

Me aperta os passos e cadência

Numa constante frequência

Descompassada de meu poema


Essa roupa não minha 

tão cheia de rotina precisa

No meu corpo sem horários e prazos 

molambo bordado de histórias

havidas nos segundos


Ávidas, ávidas, ávidas

histórias dentro de mim 

sem relógios, sem métricas

sem precisão, sem propósitos

sem hora de começo e fim


E me ponho, não sei, nessa roupa

Dessa uma  provisória

Tão estranha nesse espelho

pousado sobre o joelho

e vazio daquela que fui


Meu joelho  que se mostra 

Sem a roupa da que foi embora

Pelo mundo em que eu vivia 

E  pelas razões que  já não há 

em minha desarranjada poesia


Nua à janela espero e ajeito

 a métrica de meu tempo 

tocando-o para a frente

até a outra voltar

a trazer-me poema e vida

ou quem sabe o tal mundo 

com as razões de ficar.











quarta-feira, 19 de agosto de 2020

Eva


São para ela as pedras, todas as pedras.

Ela que é feita da matéria feminina, menina.

Menina nada! É mulher.

Nasceu fêmea para tirar o macho de sua razão.

A culpa foi sua, sempre sua.
Menina nada! É mulher. Se não hoje, amanhã.

Como pôde atrair dessa maneira?

Ser tão mulher? Nunca menina: mulher

Voz e querer.

Renegou o fruto imposto.

Menina, safada, mulher.

Assassina. Mulher.

E se, no ventre, trazia outra menina?

Outra mulher.

Criminosas as duas

a nos tirarem o sossego

e o paraíso da hipocrisia

essas malditas mulheres!

segunda-feira, 27 de julho de 2020

TOCA RAUL! Crônica de uma sociedade lúcida.








Domingo quente de quarentena, ânimos quentes, futebol, informações desencontradas ou sequer ouvidas, e um desejo louco, alucinado de se "voltar" à vida.

Na ruazinha do bairro, até então calmo, aglomeravam-se jovens com seus corpos, copos, músicas e sem nenhuma máscara de proteção em seus rostos. Mal se podia passar veículo, já que moços e moças ostentando carne, sorriso e uma dita "coragem" confraternizavam ruidosamente tomando espaços todos. A música nas alturas, risos mais altos em cima.

Todos se abraçavam, todos celebravam, brindavam.

Conferi notícias a saber se já haviam achado a cura. Nada.

Volto à janela. Posso ver, lá longe, em meu desalento, a rua lotada.  Agora era uma música funk que soava naquelas caixas enormes de carros enormes. 

Em dado momento, em meio ao vozerio, destaca-se uma voz forte mas meio abafada: 

- Toca Raul, toca Raul!. 

Não devo ter ouvido bem, pensei. E, realmente,, além de mim na janela distante, parece que ninguém ouviu esse estranho clamor e a gritaria continuava a mesma na festa.

Do meio da massa de gente, então a vejo. Surge a figura dela, a autora do grito abafado, a conhecida figura da louca que vaga nas ruas do bairro. Esquálida, com sua voz de lâmina a cortar o pano da máscara. Vagando, atravessando com seu corpo magro aquela abundância de gente. 

A louca, sozinha, trazia a sua máscara contra a peste na face, passando pela multidão sem máscara, e,  no meio de um funk, pedia Raul.

Sim, só a louca usava a máscara. E com esta se foi, vagando, tornando-se minúscula aos meus olhos da janela. Lá se ia a louca, usando máscara contra contaminação,  na mesma avenida em que motos de entregadores de comida e de qualquer coisa voavam continuamente no asfalto. 

Pensei  em algum grande diretor a retratar a tal cena. Não pude defini-la para entregá-la hipoteticamente a algum... Apenas, diante de mim, de uma espécie de tela de cinema da janela do apartamento, testemunhei o "novo normal".

"- Toca Raul, toca Raul."
Fazia mesmo todo sentido.

(Maria Angélica Taciano)

sexta-feira, 24 de julho de 2020

O Rei Bufão






Era uma vez um rei bufão. Os maus espertos diziam que seria fácil dominá-lo; os sábios bons diziam que, com sabedorias, iriam derribá-lo.

E o tempo passava e ele praticava toda a sua torpeza. 

No começo, para espanto dos bons e dos maus, seus feitos eram jocosos, típicos de  bufão. Tais feitos iam desde chuveiro de xixi,  palavras chulas, gestos vergonhosos pro mundo ver, reverências humilhantes a outros reis, até bravatas de falsas declarações de guerra, para o pânico de todos. 

- Foi brincadeira!, dizia. E nem os maus espertos, nem os sábios bons conseguiam detê-lo. 

Sabia-se que o rei bufão tinha uma caneta mágica, que desescrevia num dia o que havia escrito no dia anterior,  e essa caneta causava balbúrdias no reino, sobretudo entre os bons. E enquanto todo mundo tentava traduzir seus escritos e desescritos, o rei bufão sussurrava  maldades bem piores à noite e o reino amanhecia ainda mais desajustado e triste.

Um dia, veio uma peste, uma peste virulenta que matou muita gente em vários reinos. 

Todos, os espertos maus e os sábios bons, sentiram que, agora, era chegado o fim do tempo do rei bufão. Afinal, pensavam eles, com mortes não se brinca.

Mas o rei bufão não negou sua estirpe engraçada, até aplaudida por muitos com cuja vida ele também brincava, e sendo muito, mas muito bufão, passou a brincar com morte, sim. Com a morte dos outros. 

Mandou embora os ministros da saúde, desacreditou os cientistas, jogou falsas curas no ar, sempre com um sorriso nos seus dentes feios. Jogou as vidas de seu povo num tabuleiro de sorte e azar. 

Uma vez, em uma de suas divertidas apariçóes, ele até correu atrás de uma ema com um veneno na mão, veneno que oferecia a seu povo como remédio contra a terrível peste. Como ria!
.
Não se achava um jeito. Nem os maus espertos, nem os sábios bons conseguiam dominá-lo ou derribá-lo, e o rei bufão continuava a ser rei quase sem preocupação.

E o reino cada dia morria mais um pouco, até virar uma montanha de mortes. 

O rei bufão ria, o rei bufão mentia, o rei bufão prosseguia. E a história não termina.

Era uma vez um rei bufão. Os maus espertos diziam que seria fácil dominá-lo, os sábios bons diziam que, com sabedorias, iriam derribá-lo..."






(Imagem: detalhe da obra "Cucorongna e  Pernoualla", Jacques Callot, Água forte, 1622)


quarta-feira, 22 de julho de 2020

Senta que lá vem filme : O VALOR DE UM HOMEM






O filme francês "O Valor de um Homem" (La Loi du Marché, de Stéphane Briz; 2015) mostra a peregrinação de um homem, já contando com mais de 50 anos, para recolocar-se no mercado de trabalho. Ele é casado e tem um filho deficiente de seus 12 anos.

No início da trama, aparece o personagem em entrevista com um agente de recolocação, em que questiona o porquê de seu encaminhamento para um curso de aperfeiçoamento e estágio de alguns meses, para então tais conhecimentos ser tidos como obsoletos pelas empresas contratantes. Curioso é que as cenas tinham uma câmera estática e deixava, por muito tempo, a cena fluir pelos diálogos e pelas expressões, de modo que a fala, às vezes persistente, e até repetitiva, mantida num mesmo ponto de argumento, era muito menos dinâmica e bem mais pobre do que a mudança sutil, mas contínua, dos semblantes nesse mesmo intervalo de tempo. O ator Vincent Lindon tem uma atuação preciosa!

No decorrer do filme, a fala do personagem vai diminuindo e entrando para si, deixando cada vez mais espaço à expressão, como nos ocorre quando somos submetidos a desventuras reiteradas e sem uma tábua de salvação ao alcance de nossas vistas. De fato, a gente vai guardando a fala, por preguiça ou medo ou falta, ainda que o silêncio denuncie muito mais pelos gritos da expressão corporal. E os olhos...esses são os mais proeminentes oradores.

Há, no filme, cenas fundas sobre a conscientização dessa precariedade, da perda da força e a rendição. Eu destacaria, dessas cenas, a conversa com a moça do banco, a negociação sobre a casa e a aula de dança, entre tantas primorosas. 

Enfim, toda a perda de autoestima, da graça que a falta de dinheiro e ou de perspectiva impingem ao homem comum, deixando nele um halo triste no corpo e na alma, é mostrada na história, no conjunto, por meio de um sistema cruel e desumano que devora, como mar em ressaca, as pessoas, o personagem. E isso sendo paulatinamente imposto como o "normal" da vida. 

Ele não é Daniel Blake... Poucos são, poucos somos.

Filme tocante.


terça-feira, 21 de julho de 2020

Bruta Poesia

Era gente de pura poesia

             Mas não mais sabia expressá-la
              em rima ou prosa

                       Não compreendia essa gente
                                          essa sua bruta poesia






terça-feira, 14 de julho de 2020

Da fome e dos sorrisos











O velho me pediu um prato
Um pedido roto em olhos rotos
para uma fome atávica
No chão, sentado esperava
na calçada turbulenta da gente
que desviava sem reclamar
De fato, ninguém reclama
da pobreza no caminho prestes
a aliviar-se de sua própria miséria
e da indisposição para incômodos
de fomes outras no caminho
Vem a fumegante iguaria
recendendo aos prazeres da boca
e das mãos que a recebem
entre rugas, sujeiras
e um desenho histórico
Mãos que se metem
num saco de guardar o nada
e a fome e o frugal banquete, adiados,
para o alívio dos olhos,
da humilhação e da espera
Pela presente e futura partilha
antes da partida, sorrisos mudos
sorriso meu, sorriso dele
um triste sorriso na boca com dentes
e um sorriso alegre sem nenhum dente na outra
Da boca nua uma tal alegria
que a minha tão distante convida
para essa alegria de quem não esqueceu
que, para além de morder,
dentes servem aos sorrisos
E meu sorriso tão caro e branco
tão faminto de contentamentos
entende que sorriso ele mesmo
sem nada, nada a ser mais bonito
seria esse grande e largo sorriso sem dentes
alimentado por pão, direito e abrigo




sábado, 4 de julho de 2020

O medo de te perder





O medo de te perder
Dorme comigo
Divide nossa cama
Me manda embora
Me tira as pernas
que abro a outros
Desejos tiranos
que não me têm
na libido fácil
trancada em baú
no fundo do mar
Um mar de ondas
que me sufocam
que me afogam
Nesse oceano
infinito do infinito
medo de te perder

quinta-feira, 18 de junho de 2020

Imagens

Esse encantamento
de Narciso
homens petrificados
pelo maldito espelho

Quando borboletas
apenas estão a voar
pondo cores
e luzes aladas no ar

Asas longínquas
ruflando repetido eco
a surda flor
deixada no lugar


segunda-feira, 8 de junho de 2020

A lua quieta


A lua quieta lá de cima
 ilumina minha rede
 quieta

Quieta a lua
 aqui embaixo
 lá de cima faz revolução







Ressaca






Uma garrafa na praia de minha ilha... Eu já tão acostumada a lançar minhas garrafas na tranquilidade da quase certeza de que nunca serão encontradas, surpreendo-me com uma garrafa estacionada na minha praia.
Minha eterna dúvida de tudo questiona se essa garrafa, de fato, deveria estar nas franjas das águas de minha ilha. E eu tenho nas mãos, incrédula, essa garrafa com uma mensagem em seu interior e não sei se devo abri-la sem saber o que ela traz...ou pode levar de mim...
Por que o mar de meu destino me desinquieta, me tira do estado do meu solitário labor de apenas lançar garrafas?
Seria covardia ou nobreza minha lançá-la de novo ao mar a encontrar, talvez, seu verdadeiro curso ou pouso melhor? E o meu destino, continuaria o mesmo?
Veio-me uma garrafa e eu, até então dona de minha ilha e dos desígnios incertos de minhas próprias garrafas ao mar, trago às mãos uma garrafa estrangeira e não sei o que fazer.
Olho o mar...


Conversando com Bukowski




- O amor é como um dodecaedro espelhado dentro de uma caixa também espelhada.

-Dodecaedro?

-Aquele lustre espelhado de boates, bailes, que emite brilhos multicoloridos nas pistas de dança...

-Ah! - disse ela com um ar pensativo. Depois completou, convicta:  - Lindo, louco e fantasioso, mas no fim, nada além de uma bola de espelho que só tem graça no escuro e com poucas luzes

(Maria Taciano)

sábado, 30 de maio de 2020

Conversando com Bukowski II - Revelações de Confinados *





Não posso escrever sobre o fora, se tudo agora se passa dentro.

Não tenho temperamentos de contar horas de espera, tampouco ter ciência do esperar, o que me impacienta. Não me apraz, como um condenado, contar as memórias de uma prisão, talvez porque nunca estivesse numa e, agora, prefiro não pensar em grades, grades de medo.
Mas como escrever sem contar, se contar alguma coisa não se desprende de uma necessária contagem cronológica? (Dia 01 - Acordei cheia de esperança e corri na sala; dia 02, ainda com esperança mas com dor no corpo da corrida de ontem; dia 03 tive um lampejo de extrema lucidez e quase me desesperei, passei o dia na cama; ... dia 50 estou quase acertando meu enésimo cronograma de rotina diária que não cumprirei e me angustiarei ..._)

- Não, amigo, essa marcação não me ajuda, espanta a minha musa criativa e já ando me assustando de perdê-la de vez. Tenho medo de pensar que ela nunca tenha existido (essa pandemia, segundo dizem, anda tão reveladora!).

Reinicio antigas leituras e nas mãos me cai justamente seu livro, uma espécie de diário, um diário pré-morte. Isso a um tempo me abre uma perspectiva de ideia e a um tempo me paralisa. Ainda não é esse tema de espera que me acalenta, a espera dela, a morte todo dia numa curva de um gráfico ascendente, piscando um olho pra você.

- Escrever sobre o que nos implica desde que nascemos e, justo agora, nesta fase em que tudo em si já é duvidoso e só nos surpreendemos quando não confirmamos a certeza de que ela, enfim, nos escolheu. Não seria óbvio demais escrever sobre a morte do nosso corpo, a morte da nossa coragem, das vidas outras que nem tivemos ou teremos tempo de conhecer?

Você me sorri amarga e ironicamente a dizer que eu ainda não entendia o que se passava e me saca essa:

- "Escrever é quando voo, escrever é quando começo incêndios. Escrever é quando tiro a morte do meu bolso esquerdo, atiro-a contra a parede e a pego de volta quando rebate."

Você foi genialmente cruel. Percebeu minha fraqueza ou defeito intransponíveis. Não estava para unguentos sobre a ferida de choronas.
Joguei seu livro longe. Começar assim seria o fim para mim, trair-me ilusões neste momento, já tão escassas em mim, sobre minha capacidade de escrita e tudo o mais. Isso seria a morte. E ei-la, de novo, aqui...
Tenho, então, uma súbita vontade de xingá-lo, de chamá-lo de velho bêbado, mas tudo isso seria tão infantil, quanto agressivo e mentiroso. Eu lhe digo quase em sussurro:

- Você é incrível. Me desculpe por invejar tanto você, esse sentimento rasteiro e vil, que revela querer tomar para si aquilo que não é seu senão no que toca na admiração que lhe causa.

Vejo seu rosto entre fumaças do cigarro e  um demorado silêncio sobrevém. O silêncio permanece, embora em minha mente tudo seja tumulto. Estou quase rendida, com uma ridícula vontade de chorar. Mas quando percebe que estou pronta a desabar, você me diz:

- "Os escritores são os mais difíceis de aguentar, nos livros ou ao vivo. E são piores ao vivo do que nos livros e isso é muito ruim. E nós adoramos falar mal uns dos outros. Como eu."

E arremata :

-"Há apenas um juiz final do que foi escrito, que é o escritor. Quando é influenciado pelos críticos, editores, leitores, está acabado".

Não sei ao certo se poderia tomar a mim esse qualificativo  de escritor ou se você, indo mais fundo na ferida, falava só de  si mesmo, o único escritor na cena. O que sei é que, de alguma forma, essa fala me fez menos pesada; poderíamos discorrer sobre qualquer assunto e de qualquer altura já que eu já estava seguramente alocada no chão. Então,  eu lhe disse:

- Descubro que sempre escrevi sobre as histórias em parte que eu vivi.. E havia certa literatura nessa escrita. Havia, de fato, mais: havia lirismo na vivência. Eu inventava a minha realidade para escrever sobre ela. Eu vivia para escrever.  Eu supunha que escrevesse para fugir da realidade, que escrever fosse necessariamente a porta de saída para outra realidade. Era o contrário: era a porta para entrar nela. Agora me sinto sem vida, não consigo escrever.

Você se agita, parece que, enfim, encontramos um lugar para começar. E pega o copo pousado na mesa, arrasta-o para junto de si e se torna distante como se estivesse revivendo um momento específico interno. Se bom ou ruim, não pude apreender, pois subitamente, você tomou um gole da bebida e disse:

- "Não há nada que impeça um homem de escrever, a não ser que ele impeça a si mesmo. Se um homem quer realmente escrever, ele o fará. A rejeição e o ridículo lhe darão mais força. (Segue uma sequência de tosses). "Não há perdas em escrever, faz seus dedos do pé rirem enquanto você dorme; faz você andar como um tigre; ilumina seus olhos e coloca você frente a frente com a Morte."

Foi daí que eu me lembrei de um inquietante sonho em que eu me encontrava numa cidade cheia de ladeiras, cidade festiva e eu buscava a entrada de um restaurante em que estivera. Não sei por que havia saído dele e todas as portas eram parecidas mas não me levavam a esse lugar pretendido. Quando encontrei a porta mais parecida, ela me levou para baixo e para baixo e, embora sendo um restaurante, aquele lugar não me agradou e acordei com a sensação de que não sairia nunca dele:

- Sabe, Buck - posso chamá-lo assim? -, a minha escrita é uma busca de si mesma, ou eu me busco a mim não por ela, mas escondendo-me nela. Eu vou na frente, sem olhar pra trás, para que ela me siga. Quando o faz e me alcança,  me surpreende como se eu não soubesse que ela esteve ali sempre na corrida, na captura de mim. Devo confessar que, quando isso acontece, tenho do que escrevi ciúme e amor - o tal amor possessivo e tenebroso. É como se não tivesse nascido de mim, mas dela mesma, a escrita.

_ "Mas toda a minha vida tem sido uma questão de lutar por uma simples hora para fazer o que eu quero fazer. Tem sempre alguma coisa atrapalhando a minha chegada a mim mesmo." - você completa como uma conclusão.

 Ficamos ambos em silêncio sem nos olhar direito, como dois jogadores de cartas que não querem revelar nenhum sinal.

Pensei que, então, era disso que se tratava. É saber moldar qualquer matéria prima que se tenha nas mãos. Falta-me a magia do artesanato ou o fascínio por ele?

Tenho uma alma fascinada pela natureza humana. Gosto de escrever sobre gente, sobretudo mulheres e seus olhares caminhando por toda a galeria de sentidos e sentimentos emaranhados. Entender a dor do caule que perdeu a flor para o vento de outono.. Com essa peste eu não vejo as pessoas senão em suas imagens projetadas, roteirizadas. Pessoas ao vivo não podem se proteger de todas as perspectivas de olhares, aquela que lhes pega a essência sem mesmo saberem que foram flagradas. A  internet, algoritmos, redes sociais, os sorrisos ou a infelicidade em ondas coletivas. Por onde posso ver com aquele olhar surpreendente? Esse distanciamento no que dizem que aproxima, isso me confunde. Eis nova vida! Mas também isso pressupõe uma uma morte. "Ela, de novo", pensei.

- Talvez eu já tenha escrito tudo o que eu vivi. Estou paralisada na entrada desse novo viver.

Você apenas me olha e continuo:

- Tenho a impressão de que, com a quarentena, as pessoas estão se transportando para a vida nova com o mesmo estilo de pensar e ver da vida velha. Apenas mudaram de casa. Sabe que transam, namoram, fazem negócios, atrasam-se em reuniões, tudo pela internet?

_"Por que há tão poucas pessoas interessantes? Em milhões, por que não há algumas? Devemos continuar a viver com essa espécie insípida e tediosa?"

Pego minha lista de contatos em meu celular, deslizo o dedo nas telas que se apresentam. Até que não pouco, até que não muitos:

- Sabe que, em minha lista telefônica, em sua grande parte, só há nomes de pessoas que eu, um dia , abracei? Depois que estiveram nela, nunca mais.

Na verdade, eu é que nunca estive em lugar algum. Sempre saía de fininho, querendo sempre estar em lugar diferente. Agora que posso "estar" em toda parte, eu não sei pra onde ir ou fugir. Fugir também era meu desejo : ir embora. Agora basta apertar um botão pra eu sumir de vez, mas tenho medo.

 - " Em parte, é o poder da rotina, um poder que mantém a maioria de nós. Um lugar para ir, uma coisa para fazer. Somos treinados desde o começo. Sair, entrar. Talvez haja alguma coisa interessante lá."

- Talvez.

Tive frio. Dera-me conta de que já se passava das quatro horas da manhã. Aquele misterioso galo, que eu não sei de onde canta, em plena capital paulista, fez-me despertar do transe. Ao lado, um copo de uísque intacto ( havia colocado ali para acompanhar você). Eu estivera bêbada sem ele; supus que foi somente seu hálito que me tivesse lançado a este estado letárgico. Sentia-me sozinha como você. Sempre estive, sempre estivemos.

- Continuamos nossa conversa depois? - perguntei.

Você girou o dedo sobre a boca de seu copo de uísque. Não me olhou. Estava ausente.

Muito frio. Eu queria agora somente o aconchego quente da cama aquecida pelo corpo de meu homem, que há muito dormia em nosso quarto.

Hesitei em levantar-me, mas o fiz. Sem olhar para mim, você dirigiu seus olhos para o teclado e o botão "on/off" do notebook. Não sabia se queria mesmo desligar tudo, apertar o botão ou deixar como estava, para, quem sabe, tentar de novo amanhã. Esperei... O galo longínquo cantou novamente. Uma promessa de amanhã, de vida? Não sei. Fiz o meu registro. Foi sobre ela que falamos, enfim. Por que não?

(...)



* As falas atribuídas a Bukowski neste diálogo, apresentadas entre aspas, são citações extraídas de seu livro "O Capitão Saiu para o Almoço e os Marinheiros Tomaram Conta do Navio"; tradução de Bettina Gertum Becker, L&PM Editores, Porto Alegre, 2018.









quarta-feira, 20 de maio de 2020

De todas as Perdas

Vivemos um tempo terrível, que não é só de agora com essa doença mundial e fatal. Há outra doença mundial e fatal que nos assola há algum tempo, e que, no Brasil, em especial,  fez emergir um lado horroroso que, por mais que soubéssemos que existisse, tentávamos sufocar a duras penas. Tal doença é a doença do ódio.


O ódio que nos acomete, não é contraposto pelo amor, mas por uma espécie de anti-ódio, que é um ódio contrário ao outro ódio.


Qualquer de suas faces nos desumaniza, nos faz mal, revolve os nossos demônios, nos sufoca, retém no meio do caminho os nossos sentimentos mais elevados e genuínos, porque temos de julgá-los antes de deixar que  fluam.


E, vítimas desses sintomas, contemos nosso espontâneo encantamento diante de uma expressão de arte, para saber primeiro de seu criador, em que "lado" se situa,  e perdemos genialidades sobre-humanas, perdemos profundidade, perdemos, pior, a leveza do querer bem sem razão, essas "sem razões do amor", tão bem declinadas nos versos de Drummond, só porque somos humanos dotados de uma capacidade inerente e animalesca - sim, animal, institiva, quem diria - de simplesmente amar, coisa que a "razão" já não anda processando.


De todas as perdas, a perda: a perda de enxergar o tamanho do que se perde e o quanto fica disso. 


Relativizamos hoje, doentes,  até a perda pela morte que, por mais espiritualizada que possa ser enxergada, é sim um estado de ausência, de contato perdido, de extinção da riqueza das boas surpresas do que é vivo, de doer "de tanto medir a distância, saber que não vou te tocar além da lembrança."(Beto Guedes)


Sinto uma dor enorme pela morte do Dimenstein, com sua sensibilidade fora da curva no jornalismo que eu ouvia no meu radinho do carro toda manhã indo pro trabalho, em tempos tão distantes e simples, de semeaduras, julgava.


Por isso, entendo a poetisa  Elisa Lucinda, que, em homenagem ao escritor, falou em poesia sobre o fato de sobrevivermos, numa luta heroica de tentar e tentar. Ela o fez em homenagem principalmente à luta de Dimenstein para sobreviver a uma doença do corpo e sobreviver em todos os aspectos do viver e ser.


Cada perda importa, e muito, e é por elas e por essa de Gilberto Dimenstein e também por toda a dor que significa perder humanos e humanidades que escrevo estas palavras em pranto, esse pranto há tanto tempo contido para não "ser fraca", humana.


Ninguém me perguntou por que ou por quem, mas que eu saiba e deixe, enfim, que  meus sinos badalem.  Eles dobram, redobram hoje por todas as perdas e assim é um modo de eu me achar.


Vá em paz. E fiquemos nós, enquanto aqui, pelo amor.


Maria Angélica Taciano

terça-feira, 5 de maio de 2020

As suas Baladas

Ela ouviu tocar aquela balada de que ele gostava e que, como muitas outras, era por ele reproduzida  numa forma própria de delatar algum de seus tantos amores e desencantos.
Então, ela se lembrou de que com ele ouvia essas canções com menos encantamento do que um esforço em buscar, entre letra e melodia, uma única nota que contasse do amor dele por ela.

Sem ter nunca essa certeza, doía-lhe não participar da beleza que aquele homem exalava de sua alma precisa, seu basto cabelo cheio de vida sem ela, suas canções e poesia.

Mesmo depois de passado tanto, já tanto tempo de sua partida, ainda o vê nítido nas mesmas baladas que tocam no rádio e que ela ouve certa de que sua ausência é para sempre. É chegado o tempo de serem apenas baladas, canções que lhe fazem lembrar-se dele. E só.

A história deles dois, se é que houve, evaporara-se como fumaça, desfazendo seu indecifrável desenho no ar ou pendurada em sonhos fustigados por já cansado anseio de ser ela, uma vez, a mulher de suas baladas de amor.

E é entre fumaças que, então, a delicadeza da poesia musicada e de tão apurada escolha (como ele sabia!) desperta nela uma antiga dança. As mãos no próprio corpo, tão de si mesmo esquecido, reencontram o clímax da saudade cujo paradeiro se supunha também perdido.  E, no palco, a música devolve um tempo à alucinada bailarina, que descobre - quem diria! - que esse seu corpo guardou suas danças de quadris e suspiros, numa exaltação além do cansaço desse amor inacabado. Enfim, descobre também que é ele quem ainda povoa toda a vertigem nascida dessa elegia à memória e à música...

Houve o seu amor e ela o ouve entre os chiados de um rádio! E das baladas por ele outrora escolhidas, seja por uma sua descoberta ou por invenção, sabe agora que eram, sim, todas para ela.

Foto: Sérgio Larraín

domingo, 3 de maio de 2020

ESTE TEXTO NÃO CONTA MORTES, CONTA VIDA.


Não sabemos quanto tempo será. O que importa é que todo o tempo seja de vida.

A pandemia, de um modo simbólico (ou não), é a morte e a vida que resolveram conversar conosco um papo franco. Antes, simplesmente ignorávamos uma e outra, agora não mais.

"Cada dia pode ser o último",  dizíamos isso sem muita crença, tal a nossa capacidade de evitar uma verdade escancarada. E prosseguíamos em nosso barco sem  preocupar em olhar a viagem e, muito menos, de cuidar de guardar a moeda ao barqueiro.

Agora um tanto assustados, proclamamos, então, como uma repetição para nos acalentar, que tudo será diferente e que será melhor. E acreditamos mesmo que assim será! Mas, no fundo,  sempre está o medo. Será que estamos preparados para isso? Vamos saber viver esse novo? Haverá tempo para nos refazermos e adaptarmos? E a pergunta mais difícil e recorrente: estaremos nesse novo mundo?

Impotentes, quem diria.

E nos projetamos num futuro para evitar o presente, este agora tão difícil e tão sem máscaras, embora de máscaras precisemos para permanecer nele. A vida, em si mesma, um paradoxo.

É imenso o significado disso! Toda a humanidade foi colocada nesse despertar, nesse estalo para o que sempre foi e é.
A novidade tão somente é a nossa presença desperta para a página a virar.

Medo, luto, choro, alegria, fuga, inconformismo, raiva, descrença, esperança, amor, desejo, cansaço, dúvida, apatia, conexão, criatividade, bloqueio criativo, espanto, perdão, susto... Todos esses estados alvoroçam-se em nós a seu tempo, intensidade e necessidade e são legítimos, como legítimo é o movimento de deixá-los fluir sem precisar entender.  E  essa conversa obrigatória e diuturna com a vida e a morte faz-me, enfim, apreender que a única razão de existir é simplesmente estar e ser. Como o sol que amanhece e entardece e a noite que vem, apenas ser.

Assim, já não me servem as despedidas antecipadas, velhas companheiras de  velhas melancolias. No livro das páginas que viram incessantemente - aprendi e vejo agora -  a história é a da celebração, sem tempo medido, das presenças, dos presentes; a sempre surpresa feliz dos reencontros de cada dia, todo dia. Tudo é reencontro e, ao mesmo tempo, perenidade.

Além de respirar e alimentar e ansiar e sonhar, viver tem de ser também restabelecer toda a multiplicidade de sentimentos tantos que nos façam pulsar. Sentir não pode estar, como nosso corpo, momentaneamente, enquadrado num espaço limitado de nossa casa ou qualquer outro lugar de proteção a que recorremos, neste momento. Que não nos restrinjamos a nostalgias, saudades, expectativas. Nem tempo passado, nem tempo futuro: viver sempre foi agora, sentir é agora. Sem pressas, sem atrasos, apenas agora.

A vida está em toda parte quando já esteve dentro de nós.

Tão clara, assim, a inexistência da dicotomia vida e morte, quando tudo é encantamento, como bem definiu o escritor dos sertões de Minas Gerais! (Guimarães Rosa que soube tão bem juntar a rigidez da aridez geográfica com a sutileza de flor das almas sertanejas.).

E simplesmente me debruço à  janela a contemplar a tarde que é linda. Já vejo a primeira  estrela a se apresentar; desconfio que a seu lado paira um suspeito disco voador...

Ovnis e estrelas pulsam no céu, este céu que se movimenta em mil cores na celebração de mais um reencontro do dia com a noite.

...

Embora se possa pensar que já não, a vida ainda está lá fora.  E há vida também dentro desta janela, dentro das janelas. E isso conta, e muito.