domingo, 3 de maio de 2020

ESTE TEXTO NÃO CONTA MORTES, CONTA VIDA.


Não sabemos quanto tempo será. O que importa é que todo o tempo seja de vida.

A pandemia, de um modo simbólico (ou não), é a morte e a vida que resolveram conversar conosco um papo franco. Antes, simplesmente ignorávamos uma e outra, agora não mais.

"Cada dia pode ser o último",  dizíamos isso sem muita crença, tal a nossa capacidade de evitar uma verdade escancarada. E prosseguíamos em nosso barco sem  preocupar em olhar a viagem e, muito menos, de cuidar de guardar a moeda ao barqueiro.

Agora um tanto assustados, proclamamos, então, como uma repetição para nos acalentar, que tudo será diferente e que será melhor. E acreditamos mesmo que assim será! Mas, no fundo,  sempre está o medo. Será que estamos preparados para isso? Vamos saber viver esse novo? Haverá tempo para nos refazermos e adaptarmos? E a pergunta mais difícil e recorrente: estaremos nesse novo mundo?

Impotentes, quem diria.

E nos projetamos num futuro para evitar o presente, este agora tão difícil e tão sem máscaras, embora de máscaras precisemos para permanecer nele. A vida, em si mesma, um paradoxo.

É imenso o significado disso! Toda a humanidade foi colocada nesse despertar, nesse estalo para o que sempre foi e é.
A novidade tão somente é a nossa presença desperta para a página a virar.

Medo, luto, choro, alegria, fuga, inconformismo, raiva, descrença, esperança, amor, desejo, cansaço, dúvida, apatia, conexão, criatividade, bloqueio criativo, espanto, perdão, susto... Todos esses estados alvoroçam-se em nós a seu tempo, intensidade e necessidade e são legítimos, como legítimo é o movimento de deixá-los fluir sem precisar entender.  E  essa conversa obrigatória e diuturna com a vida e a morte faz-me, enfim, apreender que a única razão de existir é simplesmente estar e ser. Como o sol que amanhece e entardece e a noite que vem, apenas ser.

Assim, já não me servem as despedidas antecipadas, velhas companheiras de  velhas melancolias. No livro das páginas que viram incessantemente - aprendi e vejo agora -  a história é a da celebração, sem tempo medido, das presenças, dos presentes; a sempre surpresa feliz dos reencontros de cada dia, todo dia. Tudo é reencontro e, ao mesmo tempo, perenidade.

Além de respirar e alimentar e ansiar e sonhar, viver tem de ser também restabelecer toda a multiplicidade de sentimentos tantos que nos façam pulsar. Sentir não pode estar, como nosso corpo, momentaneamente, enquadrado num espaço limitado de nossa casa ou qualquer outro lugar de proteção a que recorremos, neste momento. Que não nos restrinjamos a nostalgias, saudades, expectativas. Nem tempo passado, nem tempo futuro: viver sempre foi agora, sentir é agora. Sem pressas, sem atrasos, apenas agora.

A vida está em toda parte quando já esteve dentro de nós.

Tão clara, assim, a inexistência da dicotomia vida e morte, quando tudo é encantamento, como bem definiu o escritor dos sertões de Minas Gerais! (Guimarães Rosa que soube tão bem juntar a rigidez da aridez geográfica com a sutileza de flor das almas sertanejas.).

E simplesmente me debruço à  janela a contemplar a tarde que é linda. Já vejo a primeira  estrela a se apresentar; desconfio que a seu lado paira um suspeito disco voador...

Ovnis e estrelas pulsam no céu, este céu que se movimenta em mil cores na celebração de mais um reencontro do dia com a noite.

...

Embora se possa pensar que já não, a vida ainda está lá fora.  E há vida também dentro desta janela, dentro das janelas. E isso conta, e muito.

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