terça-feira, 28 de dezembro de 2021

Sem Despedida

 Não vou escrever 

um poema de despedida

Embora sejam de despedida 

as palavras que na página pousam

a dizer dos que agora voam


Aos que foram e eu nem conhecia

sem ter tido a vez de reter 

de sua boca o fogo riso

em meus olhos de alegria


A esses este poema 

Partiram, sem despedida.


Para aquela que teria 

a palavra salvadora

no instante definitivo

da mais dura agonia


A ela este poema

Agonizou, sem despedida.


Para aquele que romperia 

o silêncio com cantigas 

de cifrada sabedoria 

sobre o insoluto enigma da vida.


Também a ele o poema

Silenciou, sem despedida.


Este não é um poema 

que trate da despedida.

dama definitiva sufragada 

de nosso adeus  e poesia


Este é um poema de ausências,

do que falta no vazio

Sem qualquer cerimônia 

a dar reverência à memória 


Os músculos que se contraíam

Na dura mecânica do choro

Tremam o corpo num abraço

sem precisar dos braços ao adeus


Pois, por mais que insista a partida,

Este não é nem será 

- posto que não mais há - 

Um poema de despedida




O de manhã da noite



Ela ainda soprava notas de alegria

Cantoria comum após noites de festejos

De dentes e beijos, de sexo e folia


Ainda trazia os cabelos molhados

Fios gotejando como as águas de suas partes

Tão festeiras, tão chuvosas

Na dança de suas carnes


Preparava-se em sorriso,

 Para, quem sabe, novas lambanças   

Com cheiro fresco de sabonete no chuveiro

Escorrendo entre tremores e lembranças


Não vestia sequer a certeza

 Se tudo estava certo

Certa estava de que tudo, talvez

Se pusesse em seu devido lugar 


O jogo estava entregue, toalha no chão. 

Quem pensa em vencer 

Se tão bom

É ser vencido na paixão



Imagem: Tela "Leda e o Cisne", Michelangelo.















quinta-feira, 9 de dezembro de 2021

Ascensão

 





Para o alto se ia, 

passando por milhões de anos

Vias lácteas, planetas 

que ficavam para trás


Subia, subia

Em direção à última estrela

Na trilha em que tudo brilhava

no tempo da luz

Mesmo tudo sendo escuridão


E ria elevada, subindo

Essa vertiginosa subida

Já sem caminho e descanso

Suplantando astrofísicos vazios


E olhava para baixo onde cometas

brilhavam como cascalhos

Arrebatando dinossauros

E lavrando terra com fogo


Subia e mais nada era alcançado

Pelos olhos e lembranças

Nada havendo além de si

Como flutuante centelha


Nem som, nem noite ou dia

Somente altura e descampado

Tão alta nunca se sentira

Tão alta, tão alta, tão só

Subia...

terça-feira, 7 de dezembro de 2021

O Nada e o Êxtase

 






As primeiras horas do domingo têm um estado 
de quietude absoluta que não se dá em nenhum outro dia. 
É o ponto de confluência entre o nada e o êxtase
como ensaio do instante que precede a última hora. 
Deve ser o momento tal em que Deus descansa, 
o tempo em que a morte vigia e não assusta

terça-feira, 30 de novembro de 2021

segunda-feira, 25 de outubro de 2021

Estranheza

 






Não pertenço a este lugar 

para que olho como estranha

que perdeu passagem e voo 


E renego esses rituais de modelos 

que não entendo e engulo a seco 

rasgando minha garganta muda.


Não pertenço a esse toque 

E nem esse som me estremece

vindo de sua boca, inaudível


Não sei o sentido e o espaço

desse abraço em que não estou 

de onde abafa  meu grito de lhe dizer


Que não pertenço  à vida sua 

Não habito a sua cama

Não sou eu em sua retina


 - Eu não sou daqui!


O único lugar em que me encontra

É o lugar de minha perene partida 

Em que nem lhe digo adeus...
















Saudade que Aperta


 


A saudade é um negócio danado

Ela tem umas mãos grandes

de dedos macios e fortes

E vai espremendo os afetos de nós

Espreme tanto que faz escorrer

sucos dos olhos da gente






segunda-feira, 27 de setembro de 2021

Vida que Segue: Presente

 





Na sala, só o corpo rijo e frio é presença
Só o corpo e alguma história levada dali.
No jardim ao redor, todos os vultos de gente
flutuam sua inconsistência de existir,
loucos para que este seja mais um fato consumido.
É insuportável a presença tanto quanto
o cheiro da vela e do incenso.
Por que tudo isso,
se dor deve mesmo é ser consumada
com um botão "publicar"?
E horas, talvez um dia, e meio milhão de olhos,
que não veem mas visualizam,
sejam o tempo necessário
de purgar esse sofrimento
de certa duração medida nas réguas ínfimas
da nanotecnologia.
Então que sufoco é esse tão cheio de intangível vazio?
Alguém sabe de alguma dor que perdure e revolva,
mas que não se fixe em entranhas
e manifeste com outra cara e nome,
geralmente, de perfil feliz?
O velório nosso é de cada dia,
enquanto a morte de verdade sucumbe ao irreal.
Que a vida nos salve e que alguma poesia se cate no ar,
porque, por dentro aqui, já quase não se respira


sexta-feira, 24 de setembro de 2021

CONSUMIDOS






O homem que cata papelão na rua 

descansa seu carrinho de catador 

e saca um iPhone do  bolso 

Folhea-o distraidamente 

com olhos que sorriem

Passados, futuros, amores...

Ou a mera alegria de um iPhone

nas mãos do catador

vencido ou vencedor.


Feliz instante?


Eu não sei entender se a cena 

é de um capitalismo ou socialismo

Nem o que significa esse tal ser feliz


Maria Angélica Taciano

quinta-feira, 23 de setembro de 2021

O BRASIL NUM FILME DE HORROR - O "Gabinete do Dr Caligari" é para os fracos



Já assisti a algumas sessões da CPI da Covid que trouxeram informações terríveis sobre o tratamento dispensado pelo Governo Bolsonaro à pandemia no território brasileiro, mas nenhuma sessão a mim me pareceu tão assustadora quanto à de hoje, em que depôs o Diretor Executivo da Prevent Senior. 


Se todas as acusações forem confirmadas quanto ao modo de agir da entidade e sua parceria com o "Gabinete Paralelo do Ministério da Saúde", pode-se afirmar que estamos vivendo, sob o céu do Brasil, o mais recente experimento aos moldes nazistas de testes científicos usando cobaias humanas, sobretudo velhos, já que a Prevent tem como público mais relevante pessoas idosas.


As menções ali referidas trazem indícios tenebrosos de experimentos em humanos com o tal Kit Covid, distribuído gratuitamente e com receituário médico padronizado a qualquer ingressante nos planos da operadora de saúde, bem como a sua aplicação em doentes confirmados e internados nos hospitais credenciados. 


O fato escabroso envolve suspeita de matricídio, subnotificação de mortes por COVID por fraudes em atestados de óbito e participação do Governo Bolsonaro como incentivador, ou até  mentor das operações, por meio do Ministério da Saúde e seu gabinete paralelo, o que envolveu profissionais da área médica vocacionados à ascensão profissional, ganho de dinheiro e sustentação de uma tese não científica de tratamento paliativo de COVID. Estou horrorizada!


A alegação da operadora de saúde e seu Diretor é que os médicos é que eram "livres" para receitar o que quisessem, ainda que tratamentos não confirmados cientificamente, e que a responsabilidade, portanto, seria desses profissionais.


Responsabilidade.


Acho que isso é  o ponto menos nevrálgico da questão, quando temos um Presidente que reafirma o tal tratamento precoce num discurso bizarro na ONU, para o mundo inteiro ouvir. (Aliás, um aparte deve ser feito: não riam do discurso, modos ou palhaçadas do Bolsonaro. Tudo ali é calculado e tem  um fim, um fim posto em plena execução, que é a eliminação massiva de vidas em nome de dinheiro e poder. E quando ele o faz na ONU, de modo à vontade, ele indica que nada o deterá. Há algo muito grande por trás disso, há não?). 


Pois então, há sérias suspeitas de que estamos com práticas de experimentos nazistas, em pleno século XXI, em território brasileiro.


E como se trata tudo isso que ao fim se mistura com toda patacoada estridente do chefe do governo todos os dias? Com uma cartinha dirigida a ministro do Supremo, ditada por Michel Temer ao facínora no poder, carta essa que nunca teve a intenção de aplacar a sanha assassina do ditador, mas acalmar a reação de quem devia reagir.


Ao largo dessas intrincadas manobras de politiqueiro, penso como deve ser horrível ter a doença COVID, e seu alto grau de letalidade, ir ao hospital, entregar-se em confiança a um médico de uma rede de saúde privada e este ministrar remédios experimentais em você. Consegue conceber o desamparo? 


Os efeitos disso são  quadros de uma degradação fisiológica inenarrável, a ver pela descrição da causa mortis no prontuário do médico Dr Wong (ferrenho defensor da cloroquina, falecido de COVID)  e da mãe do empresário Hang, o Véio da Havan. Este, pelo que se noticia, não somente internou a mãe aos tais experimentos como, depois, mentirosamente, disse em redes sociais que esta morrera de COVID por NAO usar cloroquina, numa visível e fraudulenta campanha de apoio ao tratamento. Como pode?


Temos um genocídio com requinte de crueldade em andamento, uma escalada intrépida do fascismo no país e nenhuma resistência efetiva para tirar esse homem do poder; temos, ao contrário, um Lira conivente. Tudo porque, antes da vida e da nação, há os interesses pelo dinheiro, mesmo dentre os novos "arrependidos bolsonaristas". Primam pela cautela antes de tirar o bufão do poder. Como ficariam os investimentos, e se, pior, a classe operária volta ao poder? Hum! Pensemos, vamos devagar... O que são números (de mortos) se não são números (nas bolsas)?


Tudo explica o desassombro com que até o filho fedelho de Bolsonaro faz chistes de ameaça às instituições da nação; ele sabe que caminha em território firme e dominado e que nada irá lhe acontecer.


Então, aos que riem das graças tenebrosas de Bolsonaro, tendo-o por louco e/ou burro, não o façam a menos que os risonhos sejam como hienas, que riem antes de devorarem as presas numa disputa por comida, ou que sejam uns nervosos, que gargalham de medo e  desespero diante do terror. 


Nós, gente comum brasileira, estamos morrendo de medo, dor, angústia, desamparo e de morte matada. Não achamos graça nisso.


Maria Angélica Taciano   


*(Imagem: Montagem sobre imagens do filme O Gabinete do Dr Caligari - Fotomontagem Vinícius Vieira/ Jornal da USP.)

terça-feira, 21 de setembro de 2021

A HARMONIA QUE NÃO QUEREMOS

Nunca estiveram tão frágeis, depois da democratização do Brasil,  as instituições de poder republicano do país.


Depois de uma clara ameaça à Democracia, por atos, mobilizações financiadas e discursos de ruptura da ordem constitucional pelo chefe do Executivo,  é muito inocente pensar que o pior foi superado só porque uma nova alvorada sem chumbo despertou no dia 08 de setembro.


Em tempos de algoritmos, é no ar que a realidade paira e até chumbo flutua. 


E trôpegos, tentando flutuar nessas ondas, porque depois do tropeço e antes da queda há sempre um voo, estamos aqui, sentindo-nos salvos nos discursos de quem nos trouxe até o estado de coisas em que vivemos.


Foi com estarrecimento democrático que ouvi nas rádios os brados do Presidente da República, em seu palanque golpista na avenida Paulista  Dos presidentes dos Tribunais Superiores ouvi, com não menor estarrecimento, os  gritos de pedido de reforço ao Legislativo, este que francamente claudica com outros discursos moderadores, que são tão inúteis quanto reveladores da conivência com perspectivas tenebrosas ao país.


Estamos definitivamente  por nós. Mas quem somos nós? 


Nem isso mais sabemos diante da volatilidade das certezas, que um dia se encolhem face às ameaças e gritos e, noutro, se agasalham sob um manto fino de que tudo não era "sério" , ao contrário, quase jocoso para estampar inúmeros "memes".(Vamos sorrir, afinal, que sorrir é remédio nessa terra doente sem outros remédios! )


Dizem que antes de toda morte há um sinal de um sopro de vida.  A Democracia no Brasil vai de sopro em sopro dando seu adeus fatal.


É de sopros que ela morre sob os tiros dos tais canhões que flutuam nos perdões, nas indignas lágrimas e desculpas, na fé de hoje em valentes que, ontem,  nos privaram de toda forma de vida, da dignidade da justiça, da proteção das leis e da Constituição.


A morte num segundo beijo de um vampiro, conhecido, assassino de Democracia, é hoje  aceita por um estranho alento que cobre o medo ou a descrença.


Nunca estiveram tão frágeis as instituições de poder republicano,  após a democratização do país, porque seus titulares de agora estão, ao fim e ao cabo, em harmonia. 


Ai de nós!

terça-feira, 14 de setembro de 2021

Vaga Luz

 





Olhava tão alto, tão alto
que achava que as luzes dos aviões
eram vagalumes

E ao rés do chão se deitava,
braços ao ar, tocando na escuridão,
luzes intermitentes
de luminescentes aviõezinhos ao redor

domingo, 12 de setembro de 2021

Lua em telhados

 A lua me sorri do alto de um telhado 

como o gato de Alice

Com tal sorriso convida 

 a um mundo fantástico

 como uma noite enluarada.




F

quarta-feira, 25 de agosto de 2021

CONEXÕES







 - Aqui, ela respondeu!

- Quem?

- Aquela mulher do curso.

- Acho que lembro que você comentou.

- Linda, olhos grandes, corpo bem feito.

- Conversaram no curso?

- Não.

- Não foi falar com ela?

- Não deu tempo.

- Ah...

- Mas convidei para ser minha amiga pelo Facebook. Aceitou. Mandei mensagem. Respondeu.

- Respondeu o que?

- Disse boa tarde.

- Ah, sim.

- Já faz tempo. Estamos conversando...Cara, quase lá.

- Como?

- Claro! Quero dizer que as conversas estão quentes

 (Bebe da cerveja)

- No começo resistiu, mas agora...

- Saíram?

- Cara! Ainda não. Mas está quente.

- E por que não a convida para uma bebida?

-  De onde você é? Não é assim que funciona.

- Ela não aceitaria?

- Claro que sim!

- Então...

- Então que eu quero deixar as coisas mais quentes

- Pelo celular?

- Sim, claro. Ela está quase me mandando fotos.

- Mas você não diz que ela topa sair?

- Mas ela já está quase mandando as fotos! Percebe?

- Não.

- Se ela se "mostrar" assim, é sinal de que está a fim e podemos passar para outro nível

- Que nível?

- O dos vídeos e depois das lives.

- Mas não haveria muito mais qualidade ao vivo?

- Mas é ao vivo!

- Você vai se encontrar com ela?

- Live é "ao vivo". Cara, de que era você saiu?

- Da era em que se saía com uma mulher e se assumia todo o risco por isso.

- Mas quem disse que não há risco?

- Qual?

- De ela te bloquear, por exemplo.

- Bloquear?

- Sim. Não conseguir mandar mais mensagem para ela.

- Isso seria ruim, mas você pode "furar o bloqueio" indo aos lugares que ela frequenta e fingir um encontro casual.

- Por que eu faria isso?

- Para vê-la!

- Mas estou vendo. Estou quase lá.

#

(Não sei. Falta alguma coisa nas entrelinhas ou haverá? Ele parece tão literal! Não entendi essa foto...Vou encaminhar esta aqui, no dia que publiquei meu livro. Ah, foi tão bonito esse dia! Eu estava exultante, brilhava...Adorei esse vestido. Esta aqui, assinando um autógrafo. Foi tão importante pra mim!...)

"Esse dia foi muito especial para mim."

"Linda. Adorei o decote. Hum... Estou arrepiado."

"Obrigada. que bom que gostou. Já foi nessa livraria? Estou sempre lá, tem um café..."

"O que vc está fazendo agora?"

"Onde estou?"

"Sim. Onde e como. Digo se está sozinha, se poderia mandar uma foto agora"

"Ah, estou saindo  do trabalho. Vou para casa."

"Hummmm.... apetites!!!"

"Falamos depois? Preciso ir."

"Ok. Num momento mais íntimo. Quero te ver!!!!"

"Tenha olhos de ver, rapaz! Beijos."

"Beijos todos...".

#

- Cara, acho que de hoje não passa. Vamos tomar mais uma antes de ir?

- Tem de ser rápido. Tenho de passar as músicas com o grupo.

#

(Lúcia S..., Lúcia S..., Lúcia S..." Por que não tiro esse som sibilante de minha mente? Lúcia S...; um amigo em comum; mora em São Paulo, de Salvador, BA")

"Escritora, então"

"Sim, sei lá, acho que aspirante."

"Comprei seu livro hoje. Quem sabe um autógrafo. Virtual, quem sabe...kkk"

(Essa foi foda. Chegar tão direto! Na verdade, só quero saber. Nenhuma intenção de continuar...Lúcia S, de Salvador, Bahia...Sacanagem com ele. Lúcia S, só conhecer, bater um papo. Só)

#


"Pensando em você aqui no banho...hum"

"Sério? Que fez hoje?"

"Quero saber o que faz vc agora...Dá pra eu te ver?"

"Outra foto? Agora não. Conta mais de vc. Percebi que mal nos conhecemos"

"Se vc quiser, vai ver  o "melhor" de mim mesmo" 

"É  o melhor de você? Vamos devagar"

"Safadinha, quer me deixar louco. Quer mais? hummmm"

"Preciso sair. Até."

#

"Oi. Posso ser indiscreto?"

"Oi. Tudo bem? Indiscreto já?"

"Não, por favor, não me entenda mal."

"Como devo entender?"

 "Posso explicar? Por favor!'

" Pode. Mas dependendo do rumo, não vou continuar a conversa"

" Desculpa, sério. A indiscrição seria quanto aos motivos...Bobeira minha. Esquece. Vc está bem?"

"Que motivos?"

"Do tema do livro"

"Ah! Vc o leu?

"Devorei. Muito fluente, limpo, direto, consistente"

"Obrigada. Que bom que gostou! Ele viveu muito tempo em mim, depois, nasceu de uma vez."

"Dizem que assim é quando é mais autêntico, único. Deve ser um sentimento indescritível. Quem dera..."

"De onde você é?"

" De São Paulo, Capital. E vc? Ah, eu sei. Sei que provém de Salvador, baiana. Vi no seu livro."

"Sim, mas moro em São Paulo também"

"Que sorte a minha...rs...Brincadeira. Há muito?"

"Há dez anos. Vc mora em que bairro?"

"Mooca, ZL...Vc sabe, já é uma paulistana, embora sua história do livro, sem dizer onde, traga umas referências bem baianas."

"Uau! Acho que, de fato, ainda não saí de lá. Acho que lá é que não sai nunca de nós."

" Tomara que não. Deve ser difícil."

#

"Ei, mulher, já pode voltar a falar?"

#

"Um momento, espere por favor"

"Espero."

"Não demoro... 

#

"Oi, agora estou num outro compromisso, reunião. A gente se fala depois."

"Não me deixe a perigo. Estou faminto. Hoje pode ser bem especial"

" Alimente-se, rapaz. "

"Hummm"

#

"Oi. Onde paramos? ....haha"

"Eu esperando você..."

"Como?"

"Paramos aí. Vc disse "espera" e eu fiquei aqui, parado, esperando você."

"Demorei muito?"

"Pra mim, uma vida!"

 " rs... Uma vida é muito tempo"

"Quando termina a espera, a gente nem percebe"

"Nossa! Me deixou sem fala"

"Escreve.. Brincadeira. Quero dizer, quem sabe nasça uma história...De dentro de você...Digo, como no livro..." - (Puxa, fui muito longe. Droga, ela se assustou.) - Desculpe. Falei demais (?)"

"Acho que não"

"Acha? Me alivia. Coração até acelerou de susto."

"rsrsrs...Não é para tanto"

"Obrigado por não me desconcertar"

"Bobagem... Vc trabalha no Centro?"

"Sim. E vc?"

"Eu também."

"Será que não nos "vimos" em algum restaurante, bar, café, trecho de rua? .... A vida é cheia de enredos. Vc narra melhor que eu..."

"Talvez, mas parece que vc 'vive' melhor...rs." 

"Será?" 

" Sim."

"Vem, digo, será que já nos vimos?"

"Como saber?"

"Pela foto? kkkk"

"Ao vivo sempre se é bem diferente"

" Como saber ao certo?"

"Conferindo"

"Vc quer?"

"Conferir?"

"Sim. Ao vivo."

 "Sim ...Ao vivo live ou ao vivo life? haha"

"hahaha...Life, primeiro... Para depois "to live".... Que bobeira a minha...kkkk.  Mas , não sei, estou me sentindo meio bobo...contente"

"Sério?  Acho que eu também...Onde?"

"Aqui, agora...."

"kkkkk.....Não. Onde a "life"?"

"Onde vc disser, eu vou estar lá, esperando ... Como sempre."

" Amanhã, às cinco?"

"Só me passar o endereço"

"Vou definir e te mando. Por aqui."

"Então não saio mais daqui"

"Saia!"

"Saio?"

"Sim, para ir para a "life" amanhã, comigo."

"Acho então que vou 'nascer' amanhã (rs)"

"Quem sabe como um livro meu...? Nossa, que bobeira"

"Não. eu adorei. Quem sabe possa eu ser as suas páginas de histórias?"

"Acho que já espero"

"Como eu?"

"A história, como você. Nos vemos amanhã. Beijo..."

"Beijo."


#

- Ops! Desceeee.... Oi, cara! Lembra daquela mulher do curso? Cansei dela. Muito devagar.

- Que bom!

- Vamos tomar uma cerveja? Quero contar de uma outra garota, linda, quente, A gente está quase lá... 

- Não posso. Estou em estado de espera.

- O que? Cê quer dizer que tu tá "off". Cara, você vive em que mundo, hein?! Se mexe, você não sai do lugar! Que chato deve ser...Fui...Opa, tem mensagem.  Ah, vou ter de correr. Vou pro metrô, correndo pra casa... Ela, a garota, acabou de marcar um horário para um  encontro on line.  Caraca! Tomara que dê tempo... Vou correr...De hoje não passa... 




 



sábado, 14 de agosto de 2021

A Cinderela do Terceiro Andar

                                                                           

Disse João Evangelista que não podemos saber de ninguém sem, primeiro, andar dois dias e duas noites com as sandálias desse alguém.

Muito se pode interpretar dessa exortação, mas se formos um pouco mais aos pés da coisa, ali, na interpretação literal, a mais rasteira, podemos dizer que as sandálias das pessoas - tanto quanto suas jornadas - dizem muito, sim, de seus donos.

Digo isso porque, nos tempos de reclusão por conta da terrível peste mundial, em que os sapatos não traziam para casa apenas seus donos de pés cansados, mas uma grande incerteza de vida em seus solados, não era incomum ver às janelas uma infinidade de pares de sapatos ao sol. E, desses sapatos, os possíveis traços dos donos.

Às vezes, me pegava em um certo voyeurismo contemplando sapatos, assim à janela, para imaginar tanto a jornada quanto quem as andava...

O tênis branco da corrida do dia a dia retratava a pressa ou a rendição ao conforto que custa tanto do dinheiro quanto da ausência de qualquer estética que não a de uma resposta de massa. A sandália pink era da que ensaiava um glamour suposto numa realidade visível de caminhos marrons, sujos de barro. O chinelinho de laços para ir ao mercadinho trazia o traço de quem andava no limiar das ínfimas urgências e que, mesmo assim, tão de dentro, não deixava que se rompesse o liame que separa estranho de intimidade. E havia a botina do Homem Aranha que não se definia como se sonho da criança ou de seu progenitor. Já o sapato preto sisudo era o dos dias duros e o daquele que teimava a esperança carregada nas costas, sem pernas, escrita numa sequência numérica de um cartão de apostas. O tamanco mais desconfortável do mundo era, enfim, o que levava a mocidade para essas alturas que dispensam pés...

E meus olhos andavam calmos, subindo e descendo solas, cadarços, línguas, quando tropeçou num par de scarpins-salto agulha-purpurina-pequeninos, que se meteu entre uma série de sapatos irmãos que foram ao sol, não porque voltaram de uma lida e, sim, porque há tempos não a encontravam.

Aquele brilho quase incandescente daquele exótico par de sapatos sob o sol, e que soava como uma espécie de arrebatamento herético, do ponto de vista dos ritos de moda, me seduziu de tal forma que não pude me afastar da janela sem tentar descobrir a quem eles pertenceriam.

Contrariamente aos das outras janelas que me contavam eles mesmos a suposta história, sua e de seus navegantes, esses não, esses não indicavam os caminhos até seus pés donos. Pediam necessariamente a outra personagem, a secreta, a misteriosa, aquela que nem sempre se veste dos demais sapatinhos andróginos ao seu lado, sob o mesmo sol, e que no entanto, pelas deformações comuns em todos, supunha-se serem partes do mesmo acervo de propriedade.

Á noite, ainda, a lua encontrou aquele sapato de cristal reluzindo seu tom mais verdadeiro. Extasiante! A pequenina joia podálica brilhava um brilho de cristal sob o tom azulado da lua. Era ele mesmo um caco de lua faiscando na varanda de um terceiro andar num prédio do mundo.

O ar de gala do scarpin-salto agulha-purpurina-pequenino cedia já ao tempo. Percebia-se nele um excesso de uso que revelava que o tal bibelô era um sapato de muitas caminhadas. O scarpin-salto agulha-purpurina-pequenino não veio a esse mundo a passeio.

Pois, se o sapato não veio a passeio, veio para a luta. E qual seria ela? Festas, palcos, bordéis? Cismava comigo a deduzir o que requisitava tanto brilho assim. E não era de curiosidade que se tratava. Não só. Ter uma ideia do emprego possível daqueles sapatos passou a ser um sentido, um norte, um avançar para alguém desnorteado que enfim, escolhia uma certa direção e prosseguia no rastro deixado por outro alguém adiante de si.

Eu estava nessa encruzilhada em que a vida me estatelou, no beiral de uma janela, buscando chão a partir do chão que sapatos de outras pessoas trilhassem. E estava pronta a empreender essa jornada com os meus pés agora estáticos!

Passei a querer, a precisar ver, pelo menos de relance, quem calçou aquele par de scarpin-salto agulha-purpurina-pequenino.

Quando dei por mim, estava espreitando movimentos do apartamento, luzes que se acendessem, sons, pessoas do lugar que pudessem ir à sacada para regar as plantas, nesses mínimos rituais domésticos que permitem saber, no que não se mostra porém não se esconde, muito além do que se supõe revelar para olhos ávidos de busca.

Mas nada. Além de uma constante fresta aberta da porta da sacada e uma tênue luz acesa de um abajour na sala, à noite, nenhum vestígio de gente havia naquele apartamento, parecendo que, além daquele dia em que os sapatos foram expostos ao sol e à lua e misteriosamente recolhidos, ninguém mais esteve naquela casa; o abajur aceso devia ser apenas um esquecimento de quem se foi sem apagá-lo. Ou alguém que tenha vindo somente limpar a casa, dar destino aos objetos de ocupantes já ausentes, simplesmente inventariando o espólio de quem não mais andava suas sandálias neste mundo.

Confesso que essa hipótese, a da suposta morte, tão irreversível e tão definitivo desfecho, mesmo não conhecendo a dona dos scarpins-salto agulha-purpurina-pequeninos, me deu uma tristeza tão dolorida quanto a tristeza que sobrevém àqueles que deixaram de remeter a carta contendo a mensagem reveladora a destinatário que nunca mais virá a lê-la.

Neste certo abatimento, deixei de vagar meus olhos pelos tantos sapatos quotidianamente colocados nas janelas dos outros apartamentos. Tal devaneio perdera o brilho, em todos os aspectos. Vez por outra, minha atenção buscava era o apartamento do terceiro andar, cujas iluminação e janelas mantinham o mesmo estado de imobilidade.

Não sei se dias ou meses, o tempo não se apresenta como melhor medida quando já se perdeu o rumo da busca, o fato é que, aos poucos, a rotina do quotidiano foi tomando seu lugar e a ânsia de descobrir a possuidora da relíquia em sapatos foi sendo, paulatinamente, abandonada. Fim da linha para os scarpins-salto agulha-purpurina-pequeninos.

Foi num sábado, porém, que tudo reacendeu. Uma voz em falsete soprano, com alguns deslizes de desafino chegou-me aos ouvidos e despertou-me de meu preguiçoso vaivém na rede da sacada. Não sabia definir de onde vinha tal incerto falsete até que, junto dele, de repente, explodiu Maria Callas saindo da caixa de som de um apartamento e ecoando por todo o prédio.

Rapidamente, algumas cabeças surgiram às janelas naquela típica curiosidade e irritação dos espíritos estéreis da dor e da abrupta beleza de uma ária de ópera. Para os silêncios acordes do regulamento de condomínio, outros acordes e a exuberância da voz de Maria Callas se transformam num mero ruído, decibéis transgressores dos limites da paz e do sossego comum das tais gentes de bem.

Também eu busquei saber de onde vinha tanta irreverência e inundei-me de alegria ao descobrir que era no apartamento do terceiro andar que, além da luz do abajur, outras luzes tremiam ao som do descomunal timbre da soprano.
E então os vi: dois pequenos pés descalços que, pousados no sofá, se movimentavam ora em ponta ora em retração como minúsculos remos remando no ar em ritmo lento e constante da música, da voz da da diva Maria Callas e sua extensão de agudos acima da orquestra que a acompanhava.
Não tive dúvida que, enfim, descobria os passageiros dos scarpins-salto agulha-purpurina-pequeninos. Paradoxalmente, eram pés sem os castigos dos saltos, sobretudo os agulhas, mas com pequena saliência lateral que denunciavam as linhas meio disformes da galeria dos outros tantos sapatos ao sol naquela manhã junto da estrela principal, indicando serem todos dos mesmos pés. Uma verdadeira assinatura de uma obra.

E os olhei detidamente: eram dois pés quadradinhos, de dedos gordos e curtos, brancos, sem esmaltes. Não indicariam a um desavisado, à primeira vista, serem os viajantes de primeira classe dos luminosos scarpins. Mas eles estavam ali, nas dimensões diminutas tão condizentes com a pequenez dos sapatos fosforescentes então ausentes na cena.

Acompanhei cada acorde da ópera sob a regència dos pezinhos nus em movimento, até que os vi deslizarem do sofá e se perderem de minhas vistas. Retornaram, logo após, agora firmes no chão, acomodados dentro deles, dos scarpins-salto agulha-purpurina-pequeninos.

Foi o clímax da ária, o momento de júbilo para mim que me via diante do grand finalle de ver a diva que os calçava.

Era uma noite de lua e pensei que os scarpins-salto agulha-purpurina-pequeninos não deixariam de brilhar seu brilho máximo, lunar, em execução de tão singular número. Eles viriam à sacada, ela viria á sacada, divinal, para receber os holofotes lunares!

Não veio. O espetáculo permaneceu reservado dentro da sala do apartamento e, se eu via os tais sapatos em atuação, fazia-o por uma condescendência do acaso de uma fresta de cortina que me permitiu avistar, de andares acima, exata e exclusivamente os sapatos vestindo os pés de sua misteriosa dona. Somente os acordes e pés ofereceu-me a Cinderela cantante do terceiro andar.

E foram árias seguidas de uma perfomance ardorosa. Eles, os revelados sapatos scarpins-salto agulha-purpurina-pequeninos brilhavam nos agudos, ardiam em meia ponta, giravam sobre a agulha dos saltos nos tons médios da música, andando para um lado e para o outro na gravidade de um desfecho ...... Brilhavam.

Enfim, veio a reverência final sob os aplausos, a ufania febril da plateia imaginária ou quase. Um êxtase que se completaria, se a magnífica prima-donna se mostrasse na sacada, após o último acorde.

Persistiu-se o mistério. Após o acorde final, sobreveio um súbito silêncio entrecortado por um toc toc de saltos caminhando vagarosos para o interior da casa. As luzes se apagaram, as cortinas se fecharam. E foi tudo.

No dia seguinte, vi o apartamento completamente fechado, escuro, sem qualquer fresta de cortina que permitisse qualquer acesso e sinal de que ali tenha, horas antes, brilhado supostos sonhos e, talvez, supostos sapatos.

No decorrer das semanas e meses, meus olhos voltaram ao modorrento passeio sobre os sapatos, agora sem histórias, no ordinário curso da vida que sempre e sempre se retoma.

Pensei ter esquecido, enfim, a Cinderela Madona do terceiro andar, quando, meses depois do fechar das cortinas, ao acaso, me caiu às mãos uma folha de jornal local, atrasada uma semana, e que servia de proteção a um vidro de espelho transportado elevador abaixo, junto de uns poucos mobiliários de mudança.

No tal jornal se estampava uma manchete sobre um crime passional em que um genro teria golpeado mortalmente o sogro amante. Sob a manchete havia a foto de dois homens abraçados e sorridentes, num registro de uma alegria e intimidade de tempos não tão remotos, sendo que um dos homens retratados, pequeno, de origem asiática, metido num roupão feminino acetinado com grande estampa floral, trazia nos pés os scarpins-salto agulha-purpurina-pequeninos......

Ei-la, a misteriosa dona, a prima-donna!

Percebendo minha estupefação, o vizinho da mudança, complementou:

        - Quem diria que aquele japonês sério, engenheiro de pouca conversa...! Pelo visto, tinha posses. Somente de vez em quando, passava o fim de semana aqui em sua casa, com seu suposto filho... Filho, sei... Era amante do rapaz e ele era seu genro. - Escondeu muito mal um sorriso irônico que só não se revelou por completo, porque o homem percebeu que meu silêncio dava à notícia a gravidade que a tragédia pessoal e a perda tão brutal de uma pessoa, ainda que um vizinho que mal se conhecesse, deveria ensejar a todo ser humano.

Peguei o jornal e soube que o jovem amante, num acesso de desespero e fúria, após ouvir do outro a decisão do fim do caso, cravou o salto agulha do scarpin no pescoço do amado, que morreu minutos depois.

A notícia estampada, cumprindo o modus operandi do noticiário policial popularesco, revelou que o crime se dera numa casa à beira mar, no litoral baiano, onde ambos se hospedavam quando viajavam juntos a negócio, e que ninguém da família, com esposa, filha e netos, desconfiava do caso amoroso. Soube-se que a polícia teria encontrado o assassino no local chorando sobre a vítima, que vestia o chambre de seda florido, ensanguentado, e o outro pé do scarpin, e que soava, na cena do crime, a altíssimo volume, a ópera La Traviata, na voz de Maria Callas.

O amante desesperado, de um modo épico, reverenciou, ao fim, toda a obra de arte do amado.

Ao pegar aquela folha de jornal e trazê-la junto ao meu peito, que ardia de susto e dor, o espelho que o tal pasquim de bairro cobria revelou um brilho repentino, que atravessou meus olhos. Eram, de alguma forma, os scarpins-salto agulha-purpurina-pequeninos e sua dona mostrando que entregavam a mim o grande fim à minha busca e, assim, um início à minha própria história.

Meus pés partiram a viagens menos estáticas. Não habito mais sacadas: ando em busca de meus sapatos caminheiros.

Às vezes, na minha estrada ou cabeça, estala o som oco dos scarpins-salto agulha-purpurina-pequeninos batendo no chão em que piso. Não olho para conferir se os trago aos pés, não importa; de qualquer forma, é por conta deles que caminho, voo, vivo histórias ou, às vezes, apenas descanso e só descanso.

Na minha jornada, quando a lua se ausenta, vem-me à memória a noite em que ela pousou sobre os sapatos na sacada. Nessa escuridão, revivo as cenas da lua sobre os sapatos em descanso e da diva, dias depois, em atuação dentro deles e tudo passa a brilhar com a mesma força do vigor da última ária cantada por Maria Callas, ouvida pela dona dos sapatos antes de sua definitiva despedida.

Os mesmos acordes e brilhos pulsam em meu corpo nessa hora e tudo se faz luz e música sobre ela, a que viveu sua própria ópera, absoluta e clandestinamente, sobre as alturas de dois saltos agulhas reluzentes que lhe serviram de alicerce aos sonhos de vida e de chave para a eternização de sua realização, na morte.

Sapatos e destinos caminham mesmo juntos. Agora entendo o sábio apóstolo!





(Imagem: Maria Callas em "La Traviata)


















sexta-feira, 13 de agosto de 2021

Tudo flutua no silêncio








Tudo aqui flutua no silêncio

Vida, tela, trovoada


Desato-me

Voo como o todo ao redor


Ultraleve seu braço

resgata-me  pela cintura


E paro diante de sua 

face invisível


De sua boca um sussurro morno

sopra fazendo chuva 


Chuvosa e quente

como tarde de verão

acordo.


Não há friezas nesta tarde fria.

Silêncio só.




domingo, 8 de agosto de 2021

A Devota



Faria diferente de outras vezes:
na intenção de
ninguém

Apenas deixaria que
fosse num pas menu,
livre

A explosão diria em falsetes
a quem se dedicava
a cantata

Pedro, Sebastião, Antônio...
Se ao pecado devotava,
santo não importava


E quanto mais pecado
mais a devota pecava.
Rezava, penava...

No fim do suado rosário,
nas molhadas mãos,
soluçou

As notas do soluço dedilhado,
em gozo e enfim,
deram nome a seu autor:
amor.







quinta-feira, 29 de julho de 2021

As pessoas estão nas ruas

 



As pessoas estão nas ruas, nos bares, nas praias, nas calçadas, nos shoppings, nos salões de beleza, nos prostíbulos, nas igrejas, nos bancos das praças, nas lanchonetes, nas barracas de pastel e caldo de cana das feiras livres, nas academias, nas aulas de dança, nos campos e campinhos de futebol, nas casas uns dos outros celebrando vida...

As pessoas querem apenas a vacina, qualquer vacina ou o que com isso se pareça que as liberem de usar máscaras nas ruas.

As pessoas querem andar sem máscara e não ser julgadas.

O problema não é o vírus. As pessoas querem vacina contra máscara.

No mais, tapam os ouvidos e olhos, e tocam esse bonde sabe-se lá para onde.

segunda-feira, 19 de julho de 2021

Lasso

 A sua hesitação me exaspera, 

me atira longe, 

me leva para um terreno 

de solidão e tristeza


Aporto, então, nessa ilha 

de imensa saudade nua, 

despida de sua imagem reflexa 

em meu espelho vago .


No meio de uma leitura

 meu inconsciente e meu corpo conspiram

 e eu me toco para você sem você

Nesse acesso de volúpia e vazio. 


Não tenho  para onde ir ou voltar, 

no caminho que nos levava

para onde você já não está


Você desceu numa estação 

há muito lá atrás

naquele lugar da lassidão.


Acordo sozinha nesse trem 

de amor, desejo e busca

E choro como um bebê 

sem colo e sem mãe.

terça-feira, 1 de junho de 2021

No Cartório de Registros

 




No Cartório de Registros, vidas e histórias começam e terminam num título. Entre o começo e o fim, há o meio, que é a espera no Cartório de Registros.

Ainda que a vida não viva mais em papéis, ou os papéis agora sejam outra coisa num amontoado de imagens, no Cartório tudo tem um papel. Há ali uma vida paralela, de uma realidade notarial, que não se importa com as outras realidades.

Na espera, entre senhas e trâmites e prazos e preços, há a angústia viciosa de não se ser nada antes do veredicto da boca de um cartorário, naquelas palavras que a gente aceita já por tradição sem entender exatamente o que são. Sabemos que, se elas couberem no papel e sob elas houver uma assinatura, algo começou a nascer para alguém.

E, durante a gestação que precede o tal nascimento daquelas entidades em forma de gente que espera, porque não se sabe se já foram agraciadas pelo estado de pessoa, números escorrem lentos no painel de chamada, enquanto nas horas os números avançam sem obstáculos. Uma, duas horas. E alguns olhos se fixam por um instante num duelo a saber se o número chamado é daquela criatura à sua frente, prestes a ganhar vida oficial.

 A senha não é dele e nem sua e não sendo de nenhum dos dois, ambos são jogados de volta no poço escuro da espera. 

Na TV as notícias sem som do programa que conta mortes. Tais mortes também têm senhas naquele saguão de espera de algum cartório. O legado, a herança, o patrimônio adquirido de quem não teve o dinheiro roubado do cofre pela empregada que fugiu como na notícia da TV.  E a patroa vítima, de cara triste e olhos ruins, diz coisas que o silêncio da TV e a máscara na boca não revelam, e mesmo assim a culpa está formada em fila e senhas na sala de espera do Cartório. Essa condenação não é averbada no caderno de registro, mas  já traz seu carimbo na vida real não colocada em cártulas.

O marido esfaqueou a mulher e a filha, a amante mandou veneno no doce para a esposa traída e a criança comeu e morreu. E o sinal soa para uma nova senha. Os olhos novamente se encontram e de novo são lançados ao poço da espera que faz com que a revolta muda, face ao sentimento do desrespeito, engendre na alma, num lampejo, algo idêntico à reação do marido, do pai e da amante assassina. (Que isso não se registre!). 

Novo número no painel se acende...Somos ainda e ainda bem os fortes que suportam a espera. 




sábado, 29 de maio de 2021

Quem Diz dos Dias






Há os dias leves

em que rostos cobertos

 rodando nas ruas 

 são como o silêncio

da boa espera

Esperança


Nos dias de pedra

As bocas seladas

Transferem aos olhos 

o ofício da fala da dor

 e o cansaço da espera

Desesperança


E vamos assim

Mudos de boca

De olhos aguados

Em dias de festa


Em dias de luto

levamos nos olhos

palavras não ditas

na alma trancadas

ao fim de uma espera


Maria Taciano

domingo, 16 de maio de 2021

Para sempre






Nunca mais o chapéu

Do violeiro

Nunca mais a viola

E seus dedos ligeiros

cantando nas cordas

a incurável  história

Nunca mais os olhos 

incandescentes

O encaixe do abraço

Nunca mais o sorriso quente

O algodão da voz antes 

Do beijo 

Seu beijo... 

Nunca mais



NADA OBSTANTE

 



Às vezes, sinto que vivo
uma paixão não correspondida
com a vida.
N'outras, tenho certeza
de nosso tórrido amor



(Imagem; Botero Sutra)

TIRE A MÃO DO MEU QUEIJO, COCA COLA.

 




TIRE A MÃO DO MEU QUEIJO, COCA COLA.


Pobre lua, com suas águas recém descobertas, está virando território de guerra comercial.
Logo o capitalismo vai cobrar para olhar para ela. Haverá os excluídos de noite de luar!
E os pretensos donos capitalistas da lua, que nada entendem de lua, vão reprimir as revoluções lunares...

POETAS, AMANTES, LÍRICOS E REVOLUCIONÁRIOS LUNÁTICOS DO MUNDO, UNI-VOS!


20.10.2020

quinta-feira, 6 de maio de 2021

Fiandeiras





Sempre se encontram nessa agitação de preparo de alguma coisa festiva, importante, necessária para aquecer o amor a alguém. A filha, olhos e ouvidos atentos, grudados na sabença da mãe. E é boa a emoção, instala-se rara euforia de paz, de coisas simples na alma da filha, porque tudo tem a tutela materna e tudo está em seu lugar.

Mas, em sonho, nada é muito tempo no lugar e por uma onda de gente, ambas sempre se separam levando cada qual as flores de jasmim para enfeitar a celebração  que nunca se completa. E a filha vê a mãe indo, distanciando, carregada em festa.

Acorda sem flores nas mãos, mas com a música e os ruídos no ouvido, a imagem da mãe vagarosamente se dissipando na realidade desperta. Entre chorar e sorrir, ficam os dois, porque há lágrimas molhando essa alegre saudade que perdura.

Sabe que traz algo da mãe em si, embora o espelho pouco revele dessa semelhança.  O pai lhe dizia que era a filha mais parecida em jeito e era um elogio, a irmã, quando lhe xinga diz "parece a mamãe", e ela nunca sabe se, de fato, é um xingamento.

Não traz o mesmo verde de seus olhos, mas tem o mesmo verde de seus gestos, naquele sempre cuidado do cuidar de alguém, tendo na delicadeza a expressão mais genuína da alteridade, da dor que se subtrai na divisão. Tal como naquele afago inesquecível, certa vez, de a mãe aceitar o pão oferecido para somar ao macarrão, mentindo que adorava, somente para aliviar o desconcerto mudo da anfitriã surpreendida com comida pouca para os comensais. Vê-la comer aquela fatia de pão com a voracidade de um quitute preferido fez a filha entender que uma necessária mentira é o outro lado do espelho da verdade, porque nada era mais saboroso àquela mesa de que o suspiro aliviado, a cumplicidade da mulher anfitriã não mais sozinha em seu apuro. Da escassez, e era sempre assim, a mãe fez o banquete.

Tudo na mãe exalava essa beleza primeira, uma justeza das ações, embora toda envolvida de dúvida ou de certezas trêmulas de quem precisa dar ao outro aquilo que nem muito tem. Tudo na filha, que se apresentava firme, tinha a substância dessa fragilidade originária.

Por seus olhos atentos na outra, foi que a filha teceu-se como mulher com os fios que se iam destecendo dessa mãe, paulatinamente, se desfazendo para tornar-se filha outra vez. 

E como os despojos de um naufrágio na praia, que se juntam para identificar a origem, foi nos fragmentos recolhidos da mãe que se fez o liame, a reconstrução do cordão umbilical, o fio além da compreensão de moiras.  E um nascimento lento e vagaroso e eterno se faz e refaz, na roda a rodar sem fim nem começo. 

A inconsistência de uma foi bordando a estranha consistência da outra. Na mãe, o laço de família se forjou pela cumplicidade na dor; na filha, foi dor que desatou laços. 
Na mãe, a volta à cidade natal das Gerais de céu azul e pão doce era o sonho suspenso, sempre um passo mais distante. Na filha, o amor aos territórios estranhos era o seu sítio de estar...

Ambas, contraditórias e complementares, sendo, cada uma, a fibra que se desfazia e a roca que dela se alimentava fiando, assim, a tal complementaridade garantidora da continuidade dos sonhos, da vida, da busca e da espera. 

A mãe nunca tomou o navio de retorno ao doce e azul de seu lugar; não deixou, mesmo assim, que se lhe fossem queimados os navios, destinados àquela  que empenharia a viagem.

E é nesses navios que a herdeira prossegue. Acostumada aos giros da roca circulante, a roda do leme lhe parece o mesmo lugar de alinhar os adiados caminhos maternos e os dela próprios. 

E flutua nesses navios, tão incerta, tão passageira como aquela. Flutua essa rota de retorno sem destino, cujo único porto de descanso se faz dentro dos sonhos em que encontra a mãe num sempre ritual de preparo de um festejo prometido.  

Duas degredadas fiandeiras a fiarem, sem tesouras, os fios que lhes orientam a trilha que as leva de volta para o começo de tudo, num lugar, esse seu, em que são uma e a mesma centelha de afeto e zelo, filha e mãe já não se sabe quem.






(Imagem: Dança de Fiandeiras do Cerrado; UFG)