Domingo quente de quarentena, ânimos quentes, futebol, informações desencontradas ou sequer ouvidas, e um desejo louco, alucinado de se "voltar" à vida.
Na ruazinha do bairro, até então calmo, aglomeravam-se jovens com seus corpos, copos, músicas e sem nenhuma máscara de proteção em seus rostos. Mal se podia passar veículo, já que moços e moças ostentando carne, sorriso e uma dita "coragem" confraternizavam ruidosamente tomando espaços todos. A música nas alturas, risos mais altos em cima.
Todos se abraçavam, todos celebravam, brindavam.
Conferi notícias a saber se já haviam achado a cura. Nada.
Volto à janela. Posso ver, lá longe, em meu desalento, a rua lotada. Agora era uma música funk que soava naquelas caixas enormes de carros enormes.
Em dado momento, em meio ao vozerio, destaca-se uma voz forte mas meio abafada:
- Toca Raul, toca Raul!.
Não devo ter ouvido bem, pensei. E, realmente,, além de mim na janela distante, parece que ninguém ouviu esse estranho clamor e a gritaria continuava a mesma na festa.
Do meio da massa de gente, então a vejo. Surge a figura dela, a autora do grito abafado, a conhecida figura da louca que vaga nas ruas do bairro. Esquálida, com sua voz de lâmina a cortar o pano da máscara. Vagando, atravessando com seu corpo magro aquela abundância de gente.
A louca, sozinha, trazia a sua máscara contra a peste na face, passando pela multidão sem máscara, e, no meio de um funk, pedia Raul.
Sim, só a louca usava a máscara. E com esta se foi, vagando, tornando-se minúscula aos meus olhos da janela. Lá se ia a louca, usando máscara contra contaminação, na mesma avenida em que motos de entregadores de comida e de qualquer coisa voavam continuamente no asfalto.
Pensei em algum grande diretor a retratar a tal cena. Não pude defini-la para entregá-la hipoteticamente a algum... Apenas, diante de mim, de uma espécie de tela de cinema da janela do apartamento, testemunhei o "novo normal".
"- Toca Raul, toca Raul."
Fazia mesmo todo sentido.
(Maria Angélica Taciano)
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