segunda-feira, 27 de julho de 2020

TOCA RAUL! Crônica de uma sociedade lúcida.








Domingo quente de quarentena, ânimos quentes, futebol, informações desencontradas ou sequer ouvidas, e um desejo louco, alucinado de se "voltar" à vida.

Na ruazinha do bairro, até então calmo, aglomeravam-se jovens com seus corpos, copos, músicas e sem nenhuma máscara de proteção em seus rostos. Mal se podia passar veículo, já que moços e moças ostentando carne, sorriso e uma dita "coragem" confraternizavam ruidosamente tomando espaços todos. A música nas alturas, risos mais altos em cima.

Todos se abraçavam, todos celebravam, brindavam.

Conferi notícias a saber se já haviam achado a cura. Nada.

Volto à janela. Posso ver, lá longe, em meu desalento, a rua lotada.  Agora era uma música funk que soava naquelas caixas enormes de carros enormes. 

Em dado momento, em meio ao vozerio, destaca-se uma voz forte mas meio abafada: 

- Toca Raul, toca Raul!. 

Não devo ter ouvido bem, pensei. E, realmente,, além de mim na janela distante, parece que ninguém ouviu esse estranho clamor e a gritaria continuava a mesma na festa.

Do meio da massa de gente, então a vejo. Surge a figura dela, a autora do grito abafado, a conhecida figura da louca que vaga nas ruas do bairro. Esquálida, com sua voz de lâmina a cortar o pano da máscara. Vagando, atravessando com seu corpo magro aquela abundância de gente. 

A louca, sozinha, trazia a sua máscara contra a peste na face, passando pela multidão sem máscara, e,  no meio de um funk, pedia Raul.

Sim, só a louca usava a máscara. E com esta se foi, vagando, tornando-se minúscula aos meus olhos da janela. Lá se ia a louca, usando máscara contra contaminação,  na mesma avenida em que motos de entregadores de comida e de qualquer coisa voavam continuamente no asfalto. 

Pensei  em algum grande diretor a retratar a tal cena. Não pude defini-la para entregá-la hipoteticamente a algum... Apenas, diante de mim, de uma espécie de tela de cinema da janela do apartamento, testemunhei o "novo normal".

"- Toca Raul, toca Raul."
Fazia mesmo todo sentido.

(Maria Angélica Taciano)

Nenhum comentário:

Postar um comentário