sexta-feira, 18 de dezembro de 2015

Judith

Foi para parir o meu amor
 que eu abri as minhas pernas
trêmulas e molhadas
de sede e espanto.
E me banhei de minha alma
encharcando-me de você

(Tela: Gustav Klimt; "Judith")

Tentação

Eu vou  te seduzir até você ceder.
Vou dizer palavras indizíveis
e te convencer que, em mim,
você encontra sua alegria
genuína
perdida num tempo sem mim

Eu vou te enredar,
dançar folguedo
que fale das paixões secretadas.
Como a minha por você
Libertada,
libertada das tramas do medo.















E vou te levar para a maciez de meus lençóis,
de minhas coxas,
que sei que nunca esqueceu.
Remexer seus guardados
desejos
e isso vai te endoidecer.

Vou te envolver com veleidades
de amor em mim
nunca igual visto,
de Ofélias e Julietas
fidelidades,
ser mulher de um homem só.

E depois de sorvida a fruta,
vamos, calmos, retornar
cada qual à sua direção
sem precisar confessar
que vamos encantados
pela mesma maldição

Pode ser que você até nem vá
e escolha livremente ficar.
De minha parte,
pode ser que um dia eu volte.
Eu volto.
Eu sempre volto.


Foto: Sérgio Larraín



terça-feira, 1 de dezembro de 2015

Quizás, quizás, quizás


Mais uma noite agônica de ela fingindo não esperar, esperando. E ele, depois da tempestade da manhã do dia desta noite, de novo não volta para casa.
Ela, seguindo o roteiro de sua raiva e dor, corre a preparar seus mesmos delitos, surdos, secretos, como um afogado buscando livrar-se de seu sufocamento  no fundo da água. 
Ele, para salvar  sabe-se-lá-o-que a essa altura, telefona avisando de seu atraso, atrasado, firmando sua ausência que já reverbera na sala, na mesa, na vida vazia.
Ela,  pressentindo que nada deixará de ser como sempre, mesmo com todo o esforço para afugentar a rasa ilusão que ele propõe, aceita; mais do que isso, espera.
Ele sabe, ela sabe, ambos conhecem as marcações do velho bolero, no rádio e na última gota de vinho que escorre no corpo da taça, solitária, deitada no amarelo-baço da luz do abajur da sala. 
Ele canta, ela dança, embriagados, "dois pra lá, dois pra cá". Ele lá, ela cá.

segunda-feira, 30 de novembro de 2015

Semeadores de amanhãs.



Ele lhe escrevia, de sua prisão para a dela, cartas de amor que acabavam servindo de bálsamo para as demais prisioneiras. Socializavam seu amor. Depois de soltos, recomeçaram uma vida, vendendo flores... 
E não são essas, afinal, as bases mais fundas do amor: revolução, socialismo e flores?

terça-feira, 17 de novembro de 2015

CRÕNICAS DO ASFALTO

 Uma avenida fechada para uma cidade mais aberta.

(Maria Angélica Taciano)
Confesso que sempre fui ávida consumidora da vida cultural da Avenida Paulista, desde suas renomadas livrarias, cafés, cinemas e espaços de arte como MASP e Casa das Rosas, etc, até os recantos líricos mais recônditos, escondidos no meio do "chiclete e Cabochard" do baixo Augusta. Há todo tipo de poesia ali, para as mais diversas vibes e tribos.
Assim, em minhas viagens, no mais das vezes solitárias (típico estado de uma alma saopaulina - mas eu sou Corinthians!), num intervalo da correria da vida e do dia-a-dia, sempre busquei, na região da Paulista, o ar mais assemelhado do que se espera, em termos de cultura, vida urbana e civilização, do comportamento de uma megalópole como São Paulo.
Mas nada, absolutamente nada se equiparou até hoje, nas minhas cruzadas paulistanas, com o que descobri na Avenida Paulista aberta para as gentes, no domingo. É cena de final feliz de filme, numa peculiar harmonia que encaixa todos os desarranjos de uma cidade de pessoas recolhidas, com infinitas diferenças e com um talhe extremamente conservador. As caras surpresas, meio espantadas, sem acreditar no que viam e viviam...
O que se viu na Avenida Paulista de domingo, fechada para carros, foi fraternidade. Toda aquela multidão de solitários, até então restrita às calçadas, só precisou de um pouco de espaço e de se sentir o centro do pulsar da vida de um lugar feito para as engrenagens, cimentos e motores dos veículos - estes tão carrancudos quanto seus ocupantes - para se ver gente, gente junta, uma a uma, cada qual com sua unidade, sua história feita de aqui e ou de terras longínquas, sem medo de ser, ou melhor, sem medo de apenas estar. As pessoas ocupavam, com seus pés feitos de carne, o simbólico asfalto da avenida; elas não mais apenas passavam nos passeios.
E foi nessa contradição tipicamente paulistana, que se estende muito além de seu clima, de suas diferenças sociais e culturais, do jeito de cada um prosseguir, que duas revelações se fizeram e, que talvez, marquem uma intenção definitiva de guinada dessa cidade para, enfim e efetivamente, partir sem volta para um futuro e um desenvolvimento verdadeiros.
Uma delas foi a recepção das pessoas a uma manifestação orquestrada por aquela galera pseudo-verde-amarelo, que não aceita os avanços inevitáveis do chamado do tempo. Pois bem, de repente, respeitando pacificamente a passagem deles com suas faixas de protesto em inglês e " bonecos-vudus" do ex- presidente Lula sendo esmurrados por vovozinhas, as vozes da cidade se levantaram e, num coro espontâneo das pessoas ali em paz, se ouviu o "olê, olê, olé, olá, Lula, Lula". Foi surpreendente, apoteótico e muito significativo.
A outra revelação, mais contundente e irreversível, em meu sentir, é a constatação de que se precisou fechar a rua para o povo se abrir, se conhecer a si mesmo, na alegria do prazer compartilhado das pequenas coisas como pular corda, ouvir música, dançar sem precisar pagar ou pedir licença ou temer não ser aceito.
São Paulo não suporta mais a vida entreparedes, privada. O amor dos paulistanos por São Paulo quer ser mais concreto sem ser feito de concreto.
Na rua fechada se viu um povo mais aberto, que saberá abrir as escolas fechadas, as mentes fechadas, os medos que fecham a vida...
A avenida fechada, assim, se apresenta como uma janela aberta, por onde se pode afastar a escuridão. A avenida fechada veio confrontar grilhões, velhas fantasias fantasmagóricas de que o feio e triste é que devem ser o certo. Os feios começam a ser repudiados. Hosana! E que eles tenham coragem e tempo de entender e se debruçarem na janela para celebrar a cidade em festa, uma cidade sem medo de ser feliz.


São Paulo, 2015
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terça-feira, 22 de setembro de 2015

quarta-feira, 9 de setembro de 2015

Desarranjos (Januária)


Sempre que Januária se afastava dele parecia que tudo ficava mais brando. Dentro dela uma invasão de  quietude, essa paz que desarranja as coisas tiradas de sua desordem natural.
A vida era tranquilidade nesse estado letárgico. Nada  era incômodo: as horas lentas, a força do quotidiano, o brilho brando nos olhos, o ordinário da existência escorrendo sem forma. Nenhum fogo, nenhum medo, tudo plano e sem precipícios.
Sim, era bom estar sem ele. 
O duro, no entanto, era quando recomeçavam as revoluções (e ela o sabia), mesmo se esforçando para não dar ouvidos à voz que se fazia cada vez mais alta, insistindo em despertá-la.
Essa voz que lhe instigava falava, do prazer na pulsão dos velhos medos e Januária, firmemente, contestava dizendo de sua resignação às brancas emoções. A voz insistia e evocava o ardente desvario das dúvidas; Januária resistia e, cordialmente, respondia de sua preferência pelo calmo aprendizado. Vaticinava, então, toda a possibilidade de sua solidão; Januária, duvidosa, respondia: "recolhimento". Enfim, quase vencida, a tal voz lembrava-lhe da vida na paixão e Januária, debilmente, respondia: "ilusão".
Nem pela voz ou pelos medos ou pela dúvida ou pela solidão ou pela paixão, então vencida, o que já voltava mesmo a gritar em Januária era a conhecida e preestabelecida desordem de seu coração insensato, que se alimentava da insanidade da alegria do amor e seu inevitável desassossego.
Ela, enfim, voltava para ele, única direção para onde sua bússola apontava. E era outra vez ele que a esperava, paciente, regressar de seu antidelírio. Era ele sempre, o amor, espreitando, aguardando Januária.
E tudo voltava a ser desarranjado em Januária. Tudo estava de novo errado. E era o certo.




(Imagem: Foto do Filme "Amor à Flor da Pele", do diretor Wong Kar-Wai)

sexta-feira, 21 de agosto de 2015

Liberdade de Expressão

Eu escrevo por ti.
E se sabes para ti o meu escrito,
já não te importes como eu digo
nem tampouco com o que digo
- "puedo escribir los versos más tristes esta noche..." *-
Importa-te por que, 
 por quem escrevo.
Eu escrevo por ti


































*verso do poema nº 20 de "20 poemas de amor y una cancion desesperada" de Pablo Neruda.

terça-feira, 11 de agosto de 2015

Por quem

E à simples possibilidade de sua visita, ela se viu radiante de novo do outro lado do espelho. Odiou, fundamente, cada milímetro de seu sorriso incontido, que teimava em raiar em seu rosto como também o brilho que reacendia nos olhos, postando-se completo, indecente, espontâneo.
Sentia-se fraca para sustentar a indiferença dissimulada em que se escondeu, desde o dia da partida dele, para ela tão doída.  E, assim, todas as estratégias de revanche, as palavras ferinas ensaiadas, os venenos há muito tempo curtidos naquela rejeição, eram, inadvertidamente, carregados pela força de  sua emoção. Nada daquela fúria foi esquecido, mas tornava-se menor nas ondas da inoportuna alegria.
Ele estava para chegar. De novo seus olhos se encontrariam, seus corpos de carne dividiriam o mesmo tempo-lugar, o mesmo ar. Quanto tempo se passou ainda que parecesse que fosse ontem que tivesse ouvido dele que encontrou outra pessoa. Não disse que não a amava mais. De fato, nunca pronunciou o mantra de amor em seus ouvidos. Nunca um simples eu te amo, que viesse de graça, às claras, sem que se fizessem necessárias deduções lógicas intrincadas, ambiguidades a serem definidas...
Freneticamente, ela  buscou na bolsa o vidro de perfume. Refreou-se. Não era adequado tornar tão evidente a sua emoção. Não era de sua natureza conter-se ao que sentia, mas não queria mais nada dar a ele,  nem sequer o fetiche de um odor carregado de sentido, para ela. Queria surpreendê-lo com o volume da escuridão que ela lhe preparara e lhe ofereceria.  Nada além disso, nada para ele, insistia, nada por ele. O hábito, no entanto,  a levou a pintar de vermelho a boca, antes de correr para abrir a porta.
Abraçaram-se, cordialmente. Quanto tempo!
Conversaram procurando evitar silêncios, ainda que estes estivessem a postos atrás das palavras. E não foi uma ou duas vezes que os olhos de ambos se fixaram mutuamente dizendo de suas saudades, de tantas coisas que as bocas não ousaram pronunciar. Talvez ela tenha reconhecido, naqueles olhos insistentes que perseguiam os seus, fugitivos, o velho fogo do desejo e da fome. Talvez ou quem sabe delírio seu.
E ele falava. (Contou ansiosamente de sua história amorosa, como se essa tivesse sido guardada para ser declarada a ela, que tenha sido vivida contra ela num modo, às avessas, de viver por ela.). E contou de seu novo amor com todos os ingredientes que nunca havia lhe dado. Mencionou sua entrega, a paz que nunca colheu a seu lado, que nunca sentiu nada parecido antes. E ela ouviu tudo, quieta, colocado daquela forma bem expressa, saindo dele com todas as palavras, pa-la-vras; tudo o que ela sempre quis e nunca teve.
Aquelas palavras, que não cessavam de derramar-se, paulatinamente foram se transformando em aves que voavam desordenadas naquela sala.  Por que tanta balbúrdia, meu Deus? Por que ele o fazia? Por que vinha ávido entornar riquezas que nunca, que não poderiam ser dela? Seria a forma de possuí-la, de fato, pela única vez? Ele amava outra, outra, outra ...  era isso e só isso que se repetia em eco, rufava em torno dela envolta por palavras-pássaros. Ele era por outra.
Foi difícil e necessário entender que, mais do que tudo, ele nunca a amou, e ambos descobriam isso juntos. Para essa descoberta, enfim estavam juntos, juntos pela primeira vez. Era por isso, então. Por isso!
Ele partiu, ela recolheu as xícaras e os farelos na mesa da sala.
Nenhuma dor se instalou, uma nova dor ou uma extensão de uma dor existente. Houve nada.
Nada mais para tentar entender.
Mesmo assim, eram pesadas, não voavam como as aves. Diante da torneira aberta da pia, deixou que as suas grossas e derradeiras lágrimas escorressem por ele. 


segunda-feira, 10 de agosto de 2015

O Livro de Eva e Pandora

Não é o desconhecimento das diferenças das mulheres
que faz de um homem um ignorante sobre as mulheres.
A tal brutal ignorância provém de ele
não perceber no que todas elas são iguais.
Um homem que, uma única vez na vida,
não soube com a sutileza de alguma mulher lidar
nunca conheceu mulher alguma.
É uma criatura inacabada que foi privada de trilhar
o mais longo, sinuoso e perfumado caminho do conhecimento.
Morrerá de velhice, segurança e amargura.
Nunca provou de sua porção mulher.
Nunca saberá do doce na dor
da mordida na maçã.

terça-feira, 30 de junho de 2015

As borboletas também amam


de tudo quanto eu sei de você
nada me faz mais querer ficar
do que tudo aquilo
que eu não sei de você



domingo, 3 de maio de 2015

A NOIVA


       
       A mulher caminha a passos firmes e cruza a multidão das ruas do centro de São Paulo. São quase duas horas da tarde de uma terça-feira qualquer. Seu aspecto refinado, de perfumes e lenços, meias, sapatos vermelhos, não contrasta com a paisagem degradada. Nem mesmo a sua entrada em um prédio escuro e velho chega a dar sinais de estranheza dessa composição. Na cidade grande não há tempo de conjecturas diante da urgência da vida urbana com toda sua escassez.
  Ela sobe as escadas e para diante da porta, que, entreaberta, faz de um facho de luz a única iluminação daquele corredor. Por um instante, pensa em voltar e lhe sobrevém a imagem do peixe fora da água se debatendo em busca desesperada de uma salvação que não terá. E ela que, desde menina, sentia profunda piedade por esse suplício do peixe que o pai pescava mergulhará também nas desconhecidas águas e se porá à mercê daquele que está do outro lado da porta. Por sua vez, ele nunca saberá que é o pescador a saciar-se de seu flagelo-peixe.
     Ela traz muitas contradições nesse seu passo, que é orientado tanto por desejo, quanto por raiva ou por um sacrifício de santa. Sim, a mártir entregue à sua lapidação por uma crença invencível, um bem maior a defender. A libertação na carne.
     Parada diante da porta ainda, imagina-o dentro do quarto à sua espera, estranhamente trêmulo e incrédulo de ter ao alcance do querer libidinoso a mulher distante de seu mundo. Ela sabe que ele não se renderá ao próprio temor e sobre a fêmea entregue devorará seu sexo, agarrará seus pelos, peitos, sacudirá a pele no frêmito de um animalesco desejo. Naquele quarto, tendo-a nua e sem defesas, ele esquecerá (ela não) que estará também a mãe, a esposa, a dona, a mulher que não lhe pertence.
       Essa ideia provoca nela certa náusea vinda, talvez, do atávico dever da moral feminina e da mistura do cheiro forte de mofo e gordura que o carpete do corredor escuro exala. Ela tem, no entanto, uma inexplicável necessidade de experienciar toda essa vertigem, saber-se suja com seu perfume caro, sua pele bem cuidada, suas vestes finas, a aliança que será estrategicamente postada, em espera, na cômoda de cabeceira.
       Ela entrará, não dirá palavra, deixará que ele venha e a possua com língua, dedos, dentes, o pênis penetrando-a sem o menor desvelo, sem preparo, rasgando-a e fazendo nela escorrer, entre suas pernas, todas as suas incontáveis dores e felicidades. Precisará dessas suas companheiras nesse momento.
       "Mas o que será depois?" "Como sair do mar que se tornou deserto?", dirá a si mesma.
       Ela vestirá a saia, a blusa, a aliança e deixará logo o quarto para não ter de carregar os destroços da tempestade passada. Como fazer uma cidade em ruínas voltar a ser cidade sem passar pelo meio da arrumação? Não quer arrastar o peso do silêncio necessário ao cruzar com ele num outro cenário, fingir que finge algo que nem lhe pertence de fato. No elevador, "bom dia!" sem o prazer de qualquer cumplicidade secretada que nela jamais haverá. Queria poder apagá-lo da vida, como a abelha rainha, que extermina o macho escolhido, após seu (dele) único delírio.Lembra-se de que é abelha, mas não é abelha rainha.
       Poderia escolher qualquer um, quem sabe o porteiro daquele mesmo prédio velho e fétido do centro de São Paulo, em plena terça-feira, quase às duas da tarde. Ali mesmo, atrás do balcão de entrada. Mas o homem do quarto é, nesse momento e sem  o saber, soberano único de seu querer, e ela o admite em palavras que nunca serão ouvidas por ele. Homem de estatura, viajado e inteligente que sempre a olhou com uma obscenidade explícita que contraditava sua natural timidez...A lembrança desse tal olhar de súplica mal disfarçada lhe proporciona, ali, nesse momento decisivo, genuíno gozo. E, deixando-se transbordar em tal efêmero prazer, sente umedecer a renda delicada da calcinha, numa espécie de batismo de lubricidade e alegria.
        Acorda desse êxtase momentâneo com o pensamento nos inconvenientes do depois. Não valem tão poucos momentos de voo por tão pesado após, pensou. Vira-se, então, decidida a partir dali, mas, nessa hora, os sinos da igreja badalam. São os sinos do Mosteiro de São Bento. Ela sorri e se lembra dessa mesma inquietação que sentiu enquanto atravessava de branco a nave infinita da igreja. Suspira o mesmo suspiro, e, ornamentada de toda sorte de incerteza, entra naquele quarto, fechando a porta atrás de si, enquanto a cidade lá embaixo arde suas exatas duas horas da tarde.



terça-feira, 14 de abril de 2015

Vida - Apenas um Pequeno Conto

Quando Vida  se decidiu, foi com a mínima influência do pensar. Pensar lhe confundia a ideia, lhe apaziguava os ânimos, reforçava nela as amarras do amor, do dever, do deixar-se  a si mesma para depois. A noite tinha sido difícil, não passava. No entanto, lampejos de certezas, que lhe apareciam como imagem intermitente na escuridão, iluminavam seu duvidoso intento, delineando uma sombra de largas asas, mas que traziam, também, pesos de sacos de areia a lhe puxarem para o chão. Levantou-se resoluta. O cão a acompanhava em vigília, ali, ao pé do sofá  em que ela dormira. Não, não olharia aqueles olhos caninos de incansável ternura. Isso a enfraqueceria. Mesmo assim, não pôde resistir nos cuidados quotidianos com o animal e, então, abasteceu-lhe o recipiente de ração, limpou-lhe a área de sua habitação no quintal. Ninguém o faria e ela não poderia partir com essa culpa. Seguiu, após, para o quarto e viu o homem ali, ainda dormindo à vontade, na cama que se fez mais larga com a sua ausência, o seu estéril protesto de cansaço da inexistência.. Brotaram-lhe lágrimas nos olhos que, em alguma vez, já tiveram a capacidade de enfraquecê-la por uma anestesia de perdão. Hoje não seria assim, a dor liquefeita encorajava sua decisão: iria. Na sala, já havia os rumores de seus filhos, que ao contrário de outras manhãs de sábado, puseram-se cedo de pé. Conversavam dando ares de naturalidade ao ambiente doméstico envolto num mal velado turbilhão. Ela recuou:  iria? Pegou, no entanto, a mala já feita. A bolsa rota também ostentava o desgaste de uma espera infinita, com selos puídos da única viagem. A mala tão esquecida como a memória dessa viagem. Sob o silêncio forçado dos rapazes fingindo atenção ao programa na TV, ela fechou mansamente a porta e saiu. A rua perto de casa, caminho tão rotineiro, pareceu-lhe tão opressora a indicar uma única direção. Sem saber para onde ir, tomou o primeiro ônibus. No caminho, olhando pela janela, viu-se no reflexo da vidraça misturada a vultos de toda sua história, cambaleando nos sacolejos do veículo. Chorou um choro engolido e profundo, um olhar inevitável para o infinito de seu vazio. Secou nesse choro, o quanto pôde, toda a sua água de cansaço e desilusão. O ônibus, aos poucos, foi revelando caminhos conhecidos, dando-lhe um certo conforto de espírito, embora isso lhe custasse a ousadia de seu gesto. Desceu onde sempre percorreu, onde sempre fez andar sua solidão.Sem saber o que buscar, decidiu que atenderia tão só aos apelos dos sentidos: beberia quando sentisse sede, comeria quando sentisse fome. Tentou instalar-se num hotel, como uma forma de confirmar seu propósito de só prosseguir. A fila no balcão e os olhares das pessoas, talvez a perceberem que não se tratava de uma estrangeira na cidade, fizeram com que ela recuasse e adiasse a ideia de se hospedar. Sendo meio-dia já passado e  premida pelo hábito da obediência das horas contrariando seu inicial intento de indisciplina, entrou num pequeno restaurante para almoçar, sem muita vontade, a sugerida feijoada de sábado. A amiga lhe chamou ao celular. Atendeu a chamada e ouviu da interlocutora os mesmos dizeres de sempre, carregados de uma incapacidade quase cruel de aprofundar a mais de um palmo no seu sentir, em sua dor. Os dizeres da amiga sempre provindos de um manual que não ensinava nunca a ouvir sem palavras. Após desligar o telefone, uma sensação de profunda piedade a envolveu: a amiga não era a que dava a ajuda, ela era a que precisava da ajuda. Voltou os olhos para o dia em torno de si e pôs-se a tangenciar  a vida do sábado. Sentada minúscula, com a mala aos pés, numa mesinha do lado de fora do restaurante, localização que a incomodava uma vez já passada a rebeldia inicial de postar-se assim exposta, sozinha, numa mesa de rua, fo sei deixando tocar timidamente pelos sinais de existência desse dia, do festejado sábado com seus ruídos e trejeitos que denunciam a busca exasperada de alguma coisa sempre a um passo à frente de nós. Faltando ainda uma hora para a sessão de cinema - único refúgio, nascido de seu mais autêntico encontro consigo mesma -  ela caiu numa espécie de transe de indolência não se sabe se decorrente da caipirinha do almoço ou se refluxo de sua solidão. Nesse estado letárgico, outras solidões puderam ser, então, vislumbradas e houve um regozijo seu diante dessa festa solitária. Nessa hora, o turbilhão da cidade ao qual ela nunca se sentiu pertencida abriu-lhe a porta a convidá-la "vem, você é bem-vinda nesta casa" e passaram a desfilar, diante dela, tantas formas de solidão desnudadas:  a solidão temerosa na caminhada do velho carrancudo com seu cão, a solidão triste da falsa cumplicidade dos amantes em sua conversa cifrada do amor proibido e sempre insatisfatório para um, a solidão vazia das bocas sorridentes dos jovens que falam e não se ouvem, a solidão enganada das moças bem vestidas que nem são vistas...Uma cidade populosa e imensa fragmentada em  partículas de solidões. Estranhamente, ali sozinha, constatou, pela primeira vez, que fazia genuinamente parte de algo. Ela suspirou e sorriu. Quando saiu, mais tarde, de seu cinema, costumeiramente renovada, caminhou feliz. Parou em uma banca de jornal e pôs-se a folhear livros de receitas, reconhecendo nelas o prazer de seus meninos e o dele. Num impulso, comprou dois ou três livros e colocou-os na mala que a acompanhou  por todo o dia. Já era noite, olhou o relógio. Estava na hora de voltar. 
No ponto de ônibus, dois olhos, quem sabe, observariam aquela mulher, de mala nas mãos, subindo resoluta num ônibus. Sentiriam certa inveja de tamanha certeza. Talvez viessem a supor, por alguma experiência ou intuição, que aquela  era Vida tomando de volta o seu destino.

sexta-feira, 6 de março de 2015

Noturna

Sempre que olho a lua
Lembro de mim a perguntar-te
Se foi meu o teu lembrar
na noite da lua mais linda na terra.
Disseste-me não.
E eu, mesmo esquecida,
toda a vez que vejo a lua,
lembro de mim a perguntar-te.

domingo, 25 de janeiro de 2015

quarta-feira, 14 de janeiro de 2015

Era uma vez...


















Eu finjo que vivo
Finjo que rio e
que, às vezes, sou feliz.
Finjo que quero
e que me satisfiz
Finjo que sou
esquecida até de que finjo
E só sei que, de fato,
finjo, porque uma vez eu fui
sem nem saber fingir.

terça-feira, 6 de janeiro de 2015

Poema raso




De tanto navegar em águas fundas 
de mar de amar,tombar em tombos, 
perder-me à deriva, 
fiz-me marinheiro que erra
na arte da despedida, 
e na solidão da arte de desamar.