quarta-feira, 9 de setembro de 2015

Desarranjos (Januária)


Sempre que Januária se afastava dele parecia que tudo ficava mais brando. Dentro dela uma invasão de  quietude, essa paz que desarranja as coisas tiradas de sua desordem natural.
A vida era tranquilidade nesse estado letárgico. Nada  era incômodo: as horas lentas, a força do quotidiano, o brilho brando nos olhos, o ordinário da existência escorrendo sem forma. Nenhum fogo, nenhum medo, tudo plano e sem precipícios.
Sim, era bom estar sem ele. 
O duro, no entanto, era quando recomeçavam as revoluções (e ela o sabia), mesmo se esforçando para não dar ouvidos à voz que se fazia cada vez mais alta, insistindo em despertá-la.
Essa voz que lhe instigava falava, do prazer na pulsão dos velhos medos e Januária, firmemente, contestava dizendo de sua resignação às brancas emoções. A voz insistia e evocava o ardente desvario das dúvidas; Januária resistia e, cordialmente, respondia de sua preferência pelo calmo aprendizado. Vaticinava, então, toda a possibilidade de sua solidão; Januária, duvidosa, respondia: "recolhimento". Enfim, quase vencida, a tal voz lembrava-lhe da vida na paixão e Januária, debilmente, respondia: "ilusão".
Nem pela voz ou pelos medos ou pela dúvida ou pela solidão ou pela paixão, então vencida, o que já voltava mesmo a gritar em Januária era a conhecida e preestabelecida desordem de seu coração insensato, que se alimentava da insanidade da alegria do amor e seu inevitável desassossego.
Ela, enfim, voltava para ele, única direção para onde sua bússola apontava. E era outra vez ele que a esperava, paciente, regressar de seu antidelírio. Era ele sempre, o amor, espreitando, aguardando Januária.
E tudo voltava a ser desarranjado em Januária. Tudo estava de novo errado. E era o certo.




(Imagem: Foto do Filme "Amor à Flor da Pele", do diretor Wong Kar-Wai)

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