quinta-feira, 21 de novembro de 2024

A Flor e o Canhão em "Ainda Estou Aqui".

 

Para quem não viu o filme Ainda Estou Aqui, de Walter Salles, porque não tem interesse pelo tema da ditadura, posso dizer que o filme me surpreendeu justamente pelo tema tratado ali, que é o afeto. É um filme de amor.

O título das obras  (filme e livro) são reveladores da ausência que nunca acaba ou da inextinguível presença que não se confunde com saudade. Essa ausência, esse estado de sem corpo abrupto e eterno que a Ditadura impôs a tantas famílias, retirou lhes até isso, o direito à saudade. Vagam todos na eterna espera de não se sabe o quê.

O assunto do filme seria mais uma canção em nossos ouvidos sobre a chaga aberta da Ditadura, se não houvesse nele, talvez, o olhar genial do diretor Walter Salles em pura empatia com o sentimento do autor do livro, Marcelo Rubens Paiva, conseguindo retratar, com delicadeza, assunto tão árduo sem lhe retirar um pingo da seriedade e importância. 

O filme, em suma e ao que parece, conseguiu transpor a porta blindada da naturalização dos anos de chumbo feita pela mídia e pelo poder dominante, que criou um falso distanciamento de nossa realidade contemporânea com aquela realidade brutal que o pais viveu por décadas. Como se todo o horror tivesse sido ou pudesse ser esquecido pelo país e suas novas gerações.

Se os golpes de Estado recentes, consumados e frustrados, mostraram que a apresentação da verdade sobre a Ditadura não conquistou as mentes, a ousadia obstinada do filme perverteu essa dinâmica ao se apresentar com a coragem de conquistar corações, em terras tão cevadas pelo ódio.

Isso se dá quando o filme coloca a vida, os afetos, as relações comuns de uma família como outra qualquer sendo estraçalhadas pelas botas cruéis e assassinas da ditadura, por agentes sem nome e de caras feias, por dores de suplícios corporais e emocionais das torturas físicas e mentais, e tudo sem  qualquer motivo explicável. A flor contra o canhão.

Quem, mesmo não sendo militante político ou sequer tendo nascido naquela época, não se viu representafo naquela família de almoços de domingo, de um pai trabalhador e amoroso, de um marido atencioso, de uma mãe alegre e viva, de irmãos e seus risos e rusgas infantis, de animais de estimação adotados?

De repente, essa "sua" família é assolada por uma violência totalmente desconhecida de sua realidade. E tudo fica escuro no filme e dentro do peito e todos não têm como não perceber que a Ditadura é essa escuridão.

Que falta fazem aquele pai, aquela mãe, aquela família que já não somos! O personagem de Selton Mello, o Rubens Paiva, macio com seu porte bonachão, sorriso e  olhar inocentes,  não sai de dentro de nós, está o tempo todo presente ausente. E nós viramos a mâe, nós viramos Eunice a esperar sabendo que não terá fim essa espera.

É muita identificação!

Esse filme é imprescindÍvel por esse chamado, esse esclarecimento não apenas dos fatos particulares e reais daquela família e do "fato da sangrenta Ditadura" que nos assolou por tantos anos, mas o é principalmente por fazer brotar, a partir do sentimento, do afeto, a repulsa genuína e incontornável por tudo o que é autoritário. Ninguém consegue ousar defender ditadura depois desse filme. Talvez somente eles, os Ditadores execráveis de sempre.

E, por tudo isso, é bom ver que as salas são tomadas por muitos jovens e que as lágrimas, que são inevitáveis seja pela lembrança, seja  pelo inédito conhecimento dessa tristeza, seja pela beleza que se torna feiúra, seja pela beleza da história narrada e encenada, são agora uma força comum e compartilhada.

A gente sai da sala de cinema com uma fome de abraços e de Democracia, convictos de que levamos a marca inevitável que nos identifica: ainda estamos todos juntos aqui e ditadura nunca mais. Entenderam?

Maria Angélica Taciano

#aindaestouaqui#oscar2025

terça-feira, 8 de outubro de 2024

O Zé

 


       Existem pessoas que são a própria personificação do final feliz. O Zé é uma delas.

    O final feliz que sempre foi, para mim, um misto de êxtase e frustração, traduzindo uma verdadeira aflição em pensar que, bem na hora que tudo iria bem, que, enfim, o melhor da vida nas histórias começaria a se apresentar, pronto!, vinha o letreiro por termo ao estado de deleite perseguido por todo o decorrer do enredo. Acho que veio de aí a minha mania de sempre complementar o desfecho depois do desfecho dos filmes num sem fim danado de possíveis felicidades estendidas. Pois é, acho que o Zé transpôs para a vida real essa extensão.

    As pessoas final feliz, como o Zé, talvez nem o sejam de verdade e vivam naquele segmento de existência como que se tivessem tendo suas histórias assistidas por alguém, num curtíssima metragem de um momento.

    São aquelas figuras que, em suas intermitentes passagens pela nossa retina, ostentam, no mesmo grau, brevidade e intensidade temporal. Elas têm uma história particular, você sabe disso, mas não sabe tão bem assim dessa história, de sua vida concreta; e sempre esbarra com elas nesse átimo de final feliz apreendido não pelo testemunho dos fatos, mas por sua narração..Elas nunca estão naquele ponto da vida que você as deixou num último encontro. E nada está no território do projeto futuro. Nunca. Sua fita roda continuamente, num clímax constante como se existir não fosse, como para a maioria de nós, uma sucessão de momentos ordinários, duvidosos, uma chatice mediana que costumamos chamar de realidade.

    Eles estão sempre em movimento: mudaram de emprego, de casamento, de casa, estão prestes a fazer uma pequena alteração aqui ou acolá, e tudo num encaixe perfeito de rotina e emoção. E não se trata de acontecimentos exatamente significativos - o emprego, o casamento, o endereço -, tudo cumpriu seu tempo sem espanto. Se para você, pobre infeliz, todas essas passagens deixaram de ser propósito, seja por desânimo, preguiça ou desilusão, para pessoas como o Zé tudo foi feito com a leveza de seus passos lépidos, sempre pisando na ponta dos pés como quem sente o chão quente. E tudo melhor do que poderia ser, afinal.

    O Zé, fazia tempo que eu não o via, porque nunca tivemos uma relação de proximidade verdadeira, embora inúmeras tenham sido nossas promessas de fazê-lo. Encontrei-o num café, à tarde, debruçado sobre um quindim a que dedicava o cuidado de um prazer roubado. Ele me viu primeiro, parada diante de meu café amargo. Quando respondi com certa solicitude à surpresa do encontro - uma alegria quase verdadeira em mim - seus olhos se encheram de luz no preparo da jornada verbal que então se avizinhava. Eu era ouvidos.

    O Zé deixara, havia pouco, a cidade para morar num sítio muito próximo à cidade, aliás, um local que era o misto da pujança financeira da metrópole com a tranquilidade da mata. E o melhor, a poucos minutos de um e outro. A ele cabia virar a chave para a paisagem que queria. E os negócios, agora alocados numa ilha de puro verde e ar puro e pássaros cantantes, num condomínio de segurança, reunia e entregava tudo o que, um dia, foi necessidade. Já não mais as tinha. Estava realizado.
  
    Contou que a filha se mudara para o exterior, e, antes que eu soasse a interjeição lastimosa pela separação, ele já decantou "as sem razões do amor" e a conveniência desse exílio para o crescimento da moça e da família. E a tal distância, de alguma forma, se encaixava perfeitamente em seu outro atual modo de vida: podia alugar o lindo quarto da moça no airbnb, no tempo exato de sua ausência intermitente. E a casa seria menos vazia e se encheria de histórias a contar para a peregrina, quando retornasse.

    Outra maravilha era deixar, de manhã, o filho no trem, para o trabalho. Era o movimento certo de deixá lo e, na volta, pegar aquele pão fresquinho na padaria preferida e tomar o desjejum, agora calmamente com a companheira. E depois os negócios no andar de baixo, num arranjo ideal que quase me fazia vislumbrar as cores laranjas de um por do sol num cintilante azul prateado contornando o Zé. Pisquei os olhos, ele então se apresentou como um contraponto à minha miragem de então, contando da enfermidade do irmão...

    De sua quase desventura com a tal doença e cirurgia desse irmão resultou a cura de espírito dele próprio, o Zé, e de muita gente. Agora estava tudo bem, o irmão deixou de trabalhar tanto, vivia mais, comprou um apê na orla marítima de Recife e desfrutava a alegria de estar vivo. Todo o desfecho com um tanto de realidade mas um bom bocado de final feliz vinha dessa alma do Zé. E, agora, ainda, o Zé tinha os motivos e lugar perfeitos para desfrutar, vez por outra, da terra do frevo e do sorriso do irmão renascido. (Nesse momento, aos seus olhinhos perdidos em algum lugar e tempo bons, se juntava um sorriso de criança. Achei o Zé tão bonito!).

    Ah, o Zé! Comecei a pensar comigo o que fazia seus dias assim tão finais felizes.

    Acho que, na verdade, ao nos relatar sua sequência de felicidade, o Zé vai meio criando um roteiro, reordenando a sua história em encadeação de acontecimentos e lugares não exatamente inventados, mas de outra forma revelados. O Zé é como um projetor que traduz em luz as personagens e fatos comprimidos, codificados nas películas fotográficas escuras, reproduzindo numa sucessão iluminada, colorida, positiva a vida real em negativo, que nem sempre é um filme bom, sabemos, mas que, teima o Zé, sempre pode ser uma história passível de ser recontada e, na contação, vivida de outra forma sob os auspícios de uma sua autoria.

    Enfim, o Zé precisa por ordem na sua poesia e faz da vida em final feliz um farol de esperança para si mesmo, talvez, mas, certamente, para os que se propõem a assistir ao espetáculo de seu número. Sorte de quem compra o ingresso, pois não é sempre que se tem um Zé Mambembe fazendo barulho, colorindo, dividindo felicidade ainda que meio inventada, que adoça o café amargo e os dias de deserto.

    Não sei em que estado de ânimo, depois do encontro, o Zé seguiu seu caminho e também não sei quando, nas voltas de seu farol, encontrarei novamente sua luz. A mim me coube o empréstimo daquela felicidade lépida e passageira como os encontros furtivos com o Zé em suas traquinagens diabéticas em doçuras proibidas (ainda que o Zé afirme que o quindim daquela loja não carregue níveis glicêmicos significativos. Talvez mesmo não!). Mas posso dizer a vocês, sem invenções ou reordenação de emoções, que desse encontro do Zé e de mim, eu simplesmente segui feliz. Fim.
Que subam os créditos.





segunda-feira, 19 de agosto de 2024

Inesperados

Ela tropeçou num desejo inesperado

jogado daqueles olhos velhos

sentados a uma mesa na rua

no meio de seu caminho

de destino velho como os olhos


Ele a olhou e nela tocou

com um desejo vindo de muito antes

conduzido nesses olhos 

de que nada se esperava


De pouca avidez, quase apagada 

não eram, ainda assim

olhos nostálgicos, compassivos

da velhice sucumbida


Traziam brasa reanimada

do explícito desejo 

forjado no inabalável saber

da experiência vivida

 e da estrada a percorrer 

menos longa que a já vencida


E o desejo, mais que o tempo acumulado, 

por espraiar-se em dimensões 

desproporcionais ao caminho

 exigia mais profundidade do que  extensão 

e muita, muita urgência 


Foi neles que ela colidiu 

abruptamente

no meio desse seu caminho 

de repetido destino:

no desejo e na urgência

E parou.






domingo, 9 de junho de 2024

quarta-feira, 24 de abril de 2024

Tive dó

 



Eu tive dó 

Da mulher condenada pela lente

Ao banco dos réus 

Por  um juízo de "lives"

Que nada tem a ver com vidas 


Morto, a propósito, o velho 

Outra vez, no velho Banco 

Teve de novo negado 

Como na vida

Seu último pedido de socorro


Tive dó do velho morto 

Exposto ao escárnio 

Dos que, pior que ele, mortos já são 

E que não têm de bancos senão 

Dívida e expropriação 

Mas se preocupam se o Banco

perde aos mortos um seu milhão


E da mulher, mais sábia que eles

Que já não distingue morte e vida

Tive dó


 Tenho dó 

De todos nós à deriva

De todos em busca de algo

 E de alguns tostões de atenção 

Mortos à própria sorte

Vagando feito vivos 


E tão vivos , por outro lado

O Banco e homens de toga

Ninguém duvida

Juízes a condenarem à morte um país 


Mas sem lentes para os julgar 

Nem olhos para ver ou entender

O mútuo que fazem com a vida de todos

Com suas palavras em azeite


O velho

Embalsamado só na vergonha, 

Tanto humilhado na vida

Implora ao banco um último respiro

Quem sabe a salvar a filha

Aquela que sem saber

Não mais podia distinguir a morte e a vida

E muito antes dele jazia.


Tive dó 


segunda-feira, 8 de abril de 2024

SENTA QUE LÁ VEM FILME: "Anatomia de Uma Queda"







O filme francês Anatomia de Uma Queda, da diretora Justine Triet, e com atuações pungentes, brilhantes, sobretudo de Sandra Hüller, é arrebatador!


Retratando a história da suspeita sobre a morte do marido de uma escritora e o julgamento desta como "possível autora de um possível crime', começo por dizer que não é mais um filme sobre tribunais e assassinatos. Tais elementos servem apenas como palco para a apresentação de questões muito mais intrincadas que transformam a fria dinâmica do ambiente judiciário ali retratado numa verdadeira ágora ou num complexo divã. 


Já de início o que se vê é que a primeira queda é a da verdade. Tudo é dúvida.


Na busca de se qualificar um fato extremamente duvidoso como um crime certo, o que se vê, no decorrer da trama, é a distorção e construção de versões na defesa ferrenha dos diferentes entendimentos de uma teórica verdade. A verdade, que deve ser apenas colhida como flor que desabrocha natural, passa, assim, a ser criada e colocada como um prêmio a um vencedor, sendo submetida, nos tensos e excitantes momentos das cenas no tribunal, a uma carga de velhos preconceitos sobre temas sensíveis (fidelidade/traição, relacionamento aberto, bissexualidade, patriarcado, inocência e culpa) que permeiam as conhecidas formas de julgamentos moralizantes de nossa sociedade.


Esse emblemático ambiente da Justiça tão sujeito a falha, tão indiferente à matéria gente, tão cego da verdade, tão  desconcertado diante da dúvida, é representado, principalmente, nas figuras das personagens do jovem promotor com sua lógica, por vezes, distorcida, e da burocrática juíza, ambos ávidos para verem coroadas a sua predisposição particular à compreensão dos fatos. A uma criança cega - e essa simbologia é genial! - coube o papel de relembrar aos doutos guardiães do bem e do mal social qual é o verdadeiro sentido de Justiça.


No entanto, é no transcorrer do dia a dia, na intimidade recôndita das personagens centrais, que a anatomia se dá de forma paulatina e profunda, revelando as mazelas e demônios dos indivíduos nas suas relações com os outros e consigo mesmos, diante da incapacidade de lidar com questões demasiado humanas e que podem levar qualquer um a quedas, como a intransponível sensação de fracasso pessoal, experimentada pelo personagem do marido Samuel, ou a impossibilidade de  reconexao do casal assolado por mágoas, disputas, desconfiança, delimitando os vários territórios e "línguas" dentro de uma família.


Nessa hora, nós, os espectadores, somos envolvidos por essas circunstâncias humanas,  nossas velhas conhecidas, e, sem perceber, deixamos de ter um lado na história e vemos somente a dor da tragédia que tocou nas vidas daquelas pessoas, que não têm sequer a oportunidade e o tempo para se dedicarem ao seu luto. 


A essa altura do filme, está consumada a anatomia evocada no título  e que vai muito além da literalidade que inicialmente se supõe. Nada é mais desequilibrante do que dissecar fragilidades, fraquezas e ambiguidades num espelho que se quebra diante de todos ou diante daqueles para quem gostaríamos de ter o nosso melhor reflexo.


As razões das quedas, que qualquer ser vivente sobre a terra pode conhecer e reconhecer, ao fim as sentimos escorrendo pela nossa face e caindo em gotas num abismo de encanto e susto regidos por uma trilha sonora belíssima que completa a grandeza da obra prima apresentada pela diretora.  E o último abraço do filme não nos deixa sentir menos que isso.


Maria Taciano

sexta-feira, 29 de março de 2024

SENTA QUE LÁ VEM FILME: "FUCK! " - AMERICAN FICTION







    




O filme American Fiction, premiado ao Oscar 2024 na categoria Melhor Roteiro Adaptado e indicado a várias outras categorias da premiação, não foi um filme tão aclamado comercialmente, porém, com sua aparente despretensão, pode-se dizer que é um filme bem provocativo e incômodo.

Dirigido por Cord Jefferson e baseado no livro Erasure (apagamento), de Percival Everett, o filme trata do tema do racismo sob a ótica de compreendê lo também entranhado nas manifestações do não racismo, este tido não somente como insuficiente, mas, por vezes, antagônico ao antirracismo, como diferenciou muito bem Angela Davis.

O tema central da história é a inconformação do personagem principal, Monk (Jeffrey Wright), o apelido de Thelonious Ellison, que, como acadêmico e escritor negro e vendo que seus bons livros não embarcam na aceitação das editoras, majoritariamente brancas, revolta-se em perceber que a tal da representatividade e pluralidade proclamadas pela indústria literária somente aceitam a produção negra, naquilo que, para a sociedade, é o limite do universo de existência política, social e cultural negras: a pobreza, a violência, mães solteiras, dialetos, confronto policial, etc. A indùstria quer livros de autores negros que falem de "histórias negras", "livros negros", pontua o agente literário do escritor Thelonious.

Pois bem, Wonk, muito "fuck" da vida ( e, logo ali, explico a expressão em inglês) com tais clichês reducionistas, desafia a hipocrisia do segmento e escreve um livro horroroso, propositadamente de péssima qualidade, e o lança sob o pseudônimo de um inventado autor fugitivo da prisão. Para completar, insiste em dar o nome final ao livro "FUCK!", para espanto inicial dos endinheirados editores brancos, mas aceitação plena posterior, porque, aliás, essa é mesmo a "linguagem dos negros", usualmente usada por bandidos ou por aqueles potencialmente aptos a sê-lo, fatalizam.

O livro "Fuck!" é aceito, lançado, ovacionado por público e crítica e começa a ser preparado para virar filme com pretensões futuras ao Oscar.

Monk fica desolado com o fato de o objetivo de sua ironia fracassar e, mais ainda, se vê premido, pela necessidade familiar, de ter de aceitar o dinheiro enorme que "Fuck!" lhe proporciona.

Embora o filme faça uma crítica direta ao nicho literário, vemos que toda essa expectativa para o acesso possível a uma conscientização branca sobre a questão está em todos os setores. Por exemplo, no começo do filme, temos uma sensação de inversão, quando a aluna branca, numa sala de alunos brancos, confronta o personagem central, professor preto, acadêmico, doutor (aliás, como os demais membros de sua família preta), porque ele quer discutir um livro do seculo XVIII com seus alunos e, para tanto, parte de uma frase extraída do tal livro que usa o termo "negro" de forma racista (nigger). Mesmo ele explicando que se trata de um livro antigo que tem de ser entendido dentro do contexto da época, ela não se conforma com a grafia da frase escrita na lousa. A menina branca sai chorando ofendida da sala e ele é repreendido por colegas brancos na sala dos professores.

Por outro lado, o filme vai discorrendo sobre a vida privada complicada de Monk e de sua família de classe média: a mãe com Alzheimer e as dificuldades materiais e emocionais de se lidar com essa paulatina ausência, a dor pelo suicídio recente do pai, a aproximação com o irmão cirurgião, que recentemente se assume gay e sempre se sentiu rejeitado pela família, as perdas de pessoas amadas pelos fatos naturais da vida e das relações. Enfim, nada do esplêndido drama da família de Monk é "uma história de negros", mesmo sendo apenas uma história de verdade.

Assim, com situações em que você ri e chora ao mesmo tempo, o filme, muito bem conduzido e com diálogos preciosos (com destaque para o debate na biblioteca entre Monk e a autora negra premiada por seu recente "livro de negro"), em suma, fala dos mecanismos capitalistas de perversão de lutas e mercantilização das mesmas, e como, ao usar de uma outra linguagem, tem na força visível e invisível da estrutura dominante os meios de tentar manter as coisas exatamente como sempre foram, com os indivíduos em "posições aceitáveis" na sociedade e o dinheiro/necessidade e o lucro sendo os grandes regentes de absolutamente tudo. É dinheiro para comprar manifestação, indignação, luta, fala, lugar de fala, dor, livro, vitórias, apresentando a ordem estabelecida com outra roupa, mas exatamente a mesma. No frigir dos ovos, o que se tem é contorcionismo para obter o triunfo da continuidade do sistemão velho de guerra.

American Fiction te deixa com essa adaga na garganta, sem sabermos se é uma facada que nos tira a respiração e a vida ou uma traqueostomia que as devolve.

Há esperança?

A esperança, e ela sempre tem de haver, reside, enfim, no "cenário movediço do infinito", para usar de uma definição do poeta Baudelaire, ou seja, na luta contra o racismo ou qualquer outra opressão, uma luta que é necessariamente incansável, sem tréguas e sem fim.

sexta-feira, 26 de janeiro de 2024

Encontro e Acaso


Seu olhar me atravessa calma e obstinadamente

Como se eu fosse uma rua 

ou inteira transparência


Depois seus olhos flutuam ao solo

E do pouso emerge aquele seu risinho

que sempre te levou para não sei onde


Entre o seu olhar e o tal  riso

Ah! Passam por mim mil vidas

Já estou nua diante de você 


Você não mais vê


E tudo fica nesse encontro  na rua

que se finda na volatilidade do acaso

quinta-feira, 23 de novembro de 2023

TRABALHADORES, UNI-VOS CONTRA A GUERRA!




 TRABALHADORES, UNI-VOS CONTRA A GUERRA!


A profusão de imagens do horror em Gaza, penso eu, terá um efeito contrário ao que se pretende.


Se a situação fosse contada e contada, para que a capacidade da imaginação desenhasse o horror, na medida do que é horror para cada um, quem sabe se pudesse pensar que a situação se aproximasse mais, e de fato, ao humano de cada qual. 


No quesito de credibilidade, tanto a imagem quanto a contação verbal dos fatos ocupam o mesmo lugar de aceitação da verdade. Hoje, cada um acredita no que quer, diante da mais incontestável evidência.


Nós tivemos 700 mil mortos, no Brasil, pelo descaso na administração da COVID por um governo, de então, igualmente genocida quanto o de Israel. Além de pauta para notícia de alguns veículos de imprensa e indignação para os de sempre, nada de concreto se viu ou vê para punir os responsáveis pela morte de tanta gente. Vamos esquecendo... A estatística crescente e diária do número de mortos foi-se tornando uma rotina e, em vez de aproximar, nos afastou da dor do outro.


Mas como a bomba da COVID podia explodir em qualquer um, a reação requereu efetividade e direção objetiva contra a ação destrutiva do inimigo. Para o anticiência, tascamos-lhe Ciência e a vacina veio contrapor a rapsódia de morte orquestrada por quem da morte vive.


E qual é a vacina contra Netanyahu, para um tal enfrentamento efetivo? É o dinheiro. 


Assim, de novo, o confronto se dá entre a riqueza e a produção de riqueza. Contra o vírus sionista, somente um constrangimento popular sobre os governos dos países, para que tomem medidas efetivas para frear a sanha assassina de Israel, é eficiente. Por ele de novo, por aquele que tem força  e deixa de usá-la é que se dá o caminho para tombar a praga fascista representada, no grau máximo, no genocídio perpetrado em Gaza e imediações. É pela paralisação de toda e qualquer produção de riquezas que a mais letal resistência se fará. 


Braços cruzados da classe trabalhadora, que produz riqueza, paremos o mundo todo pela paz e pela responsabilização de quem a perturba! Sindicatos, movimentos, organizem-se para parar o dinheiro no mundo, por um dia que seja, e veremos Netanyahu e afins se desintegrarem como poeira ou como os prédios que eles derrubam sobre a cabeça de inocentes.


Assim, mais uma vez, a vida conclama: "trabalhadores, uni-vos", inoculando o antidoto no âmago do causador de todas as guerras e amarguras: o capitalismo.


Junto com nossa voz, que estejam os braços também!


#FreePalestine 


Maria Taciano

segunda-feira, 28 de agosto de 2023

Cronometria do Adeus

 




                E o tempo escorre na direção

               das despedidas


               Como dizer adeus

               se a boca foi tomada pelo beijo?

quinta-feira, 29 de junho de 2023

Fundo dentro


 


Ah! os cientistas

Eles não têm ciência

Pensam que sabem o que acontece dentro

Lá no fundo 


Do calado dos vulcões

Não sabem

Eu é que sei



sábado, 17 de junho de 2023

O Cão e o Tempo

 




O cachorro segue reto pela rua

É a vida que passa diante de meus olhos 

E entre o focinho e a cauda dele que vai

Segue um tempo enorme 

Bem maior do que o cachorro.


E o tempo ainda nem passou

Tão presente

Já é velho de acontecimentos

E age em seu passo soberano

Sobre as patas de um cão


Antes de si mesmo chega 

De tão rápido que é

Mal chegou, já se foi

E nós ainda  chegando 

A esse tempo vindouro


Eu ando a olhar o tempo

Não de fora mas de dentro 

A minha vista embaralhada 

Enjoa-me a perspectiva


Não sei dizer se sou ou fui

Desconfio já não ser 

O tempo meu...


Lá  no espelho ele está

No retrovisor

O cachorro que passava

Já é passado 

Passou







quarta-feira, 5 de abril de 2023

Quarto Lunar




Os olhos lânguidos da lua

Colados aos meus

Despertos nesta noite de vigília

Adiam a algazarra dos meus sonhos

Dormentes


E no quarto, antes minguante 

Ora crescente

Tudo é um rio de luminescente calmaria

Águas estáticas da lua em que flutuo 

Nua


Nessa nudez quieta e aflita

Lua e nua

Nossos corpos pelas águas 

Reluzentes

Boiam, noite adentro, no céu 

Do quarto lunar


No quarto lunar de seus olhos

Inundado

O véu da noite, que de lua nada esconde

Segreda espasmos de fulgores, lácteos 

Prateados


Mas todo intenso sob a lua 

É silêncio

Fases de exaltação e quietude

Por entre sussurros

O quarto se completa

Na volúpia


O cio e o ciclo se consumam:

Carne e luz

Lua em seu quarto

Mulher plena

Olhos exaustos

Fim de vigília


Amanhã é lua cheia

Dormimos