sexta-feira, 29 de março de 2024

SENTA QUE LÁ VEM FILME: "FUCK! " - AMERICAN FICTION







    




O filme American Fiction, premiado ao Oscar 2024 na categoria Melhor Roteiro Adaptado e indicado a várias outras categorias da premiação, não foi um filme tão aclamado comercialmente, porém, com sua aparente despretensão, pode-se dizer que é um filme bem provocativo e incômodo.

Dirigido por Cord Jefferson e baseado no livro Erasure (apagamento), de Percival Everett, o filme trata do tema do racismo sob a ótica de compreendê lo também entranhado nas manifestações do não racismo, este tido não somente como insuficiente, mas, por vezes, antagônico ao antirracismo, como diferenciou muito bem Angela Davis.

O tema central da história é a inconformação do personagem principal, Monk (Jeffrey Wright), o apelido de Thelonious Ellison, que, como acadêmico e escritor negro e vendo que seus bons livros não embarcam na aceitação das editoras, majoritariamente brancas, revolta-se em perceber que a tal da representatividade e pluralidade proclamadas pela indústria literária somente aceitam a produção negra, naquilo que, para a sociedade, é o limite do universo de existência política, social e cultural negras: a pobreza, a violência, mães solteiras, dialetos, confronto policial, etc. A indùstria quer livros de autores negros que falem de "histórias negras", "livros negros", pontua o agente literário do escritor Thelonious.

Pois bem, Wonk, muito "fuck" da vida ( e, logo ali, explico a expressão em inglês) com tais clichês reducionistas, desafia a hipocrisia do segmento e escreve um livro horroroso, propositadamente de péssima qualidade, e o lança sob o pseudônimo de um inventado autor fugitivo da prisão. Para completar, insiste em dar o nome final ao livro "FUCK!", para espanto inicial dos endinheirados editores brancos, mas aceitação plena posterior, porque, aliás, essa é mesmo a "linguagem dos negros", usualmente usada por bandidos ou por aqueles potencialmente aptos a sê-lo, fatalizam.

O livro "Fuck!" é aceito, lançado, ovacionado por público e crítica e começa a ser preparado para virar filme com pretensões futuras ao Oscar.

Monk fica desolado com o fato de o objetivo de sua ironia fracassar e, mais ainda, se vê premido, pela necessidade familiar, de ter de aceitar o dinheiro enorme que "Fuck!" lhe proporciona.

Embora o filme faça uma crítica direta ao nicho literário, vemos que toda essa expectativa para o acesso possível a uma conscientização branca sobre a questão está em todos os setores. Por exemplo, no começo do filme, temos uma sensação de inversão, quando a aluna branca, numa sala de alunos brancos, confronta o personagem central, professor preto, acadêmico, doutor (aliás, como os demais membros de sua família preta), porque ele quer discutir um livro do seculo XVIII com seus alunos e, para tanto, parte de uma frase extraída do tal livro que usa o termo "negro" de forma racista (nigger). Mesmo ele explicando que se trata de um livro antigo que tem de ser entendido dentro do contexto da época, ela não se conforma com a grafia da frase escrita na lousa. A menina branca sai chorando ofendida da sala e ele é repreendido por colegas brancos na sala dos professores.

Por outro lado, o filme vai discorrendo sobre a vida privada complicada de Monk e de sua família de classe média: a mãe com Alzheimer e as dificuldades materiais e emocionais de se lidar com essa paulatina ausência, a dor pelo suicídio recente do pai, a aproximação com o irmão cirurgião, que recentemente se assume gay e sempre se sentiu rejeitado pela família, as perdas de pessoas amadas pelos fatos naturais da vida e das relações. Enfim, nada do esplêndido drama da família de Monk é "uma história de negros", mesmo sendo apenas uma história de verdade.

Assim, com situações em que você ri e chora ao mesmo tempo, o filme, muito bem conduzido e com diálogos preciosos (com destaque para o debate na biblioteca entre Monk e a autora negra premiada por seu recente "livro de negro"), em suma, fala dos mecanismos capitalistas de perversão de lutas e mercantilização das mesmas, e como, ao usar de uma outra linguagem, tem na força visível e invisível da estrutura dominante os meios de tentar manter as coisas exatamente como sempre foram, com os indivíduos em "posições aceitáveis" na sociedade e o dinheiro/necessidade e o lucro sendo os grandes regentes de absolutamente tudo. É dinheiro para comprar manifestação, indignação, luta, fala, lugar de fala, dor, livro, vitórias, apresentando a ordem estabelecida com outra roupa, mas exatamente a mesma. No frigir dos ovos, o que se tem é contorcionismo para obter o triunfo da continuidade do sistemão velho de guerra.

American Fiction te deixa com essa adaga na garganta, sem sabermos se é uma facada que nos tira a respiração e a vida ou uma traqueostomia que as devolve.

Há esperança?

A esperança, e ela sempre tem de haver, reside, enfim, no "cenário movediço do infinito", para usar de uma definição do poeta Baudelaire, ou seja, na luta contra o racismo ou qualquer outra opressão, uma luta que é necessariamente incansável, sem tréguas e sem fim.

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