O filme francês Anatomia de Uma Queda, da diretora Justine Triet, e com atuações pungentes, brilhantes, sobretudo de Sandra Hüller, é arrebatador!
Retratando a história da suspeita sobre a morte do marido de uma escritora e o julgamento desta como "possível autora de um possível crime', começo por dizer que não é mais um filme sobre tribunais e assassinatos. Tais elementos servem apenas como palco para a apresentação de questões muito mais intrincadas que transformam a fria dinâmica do ambiente judiciário ali retratado numa verdadeira ágora ou num complexo divã.
Já de início o que se vê é que a primeira queda é a da verdade. Tudo é dúvida.
Na busca de se qualificar um fato extremamente duvidoso como um crime certo, o que se vê, no decorrer da trama, é a distorção e construção de versões na defesa ferrenha dos diferentes entendimentos de uma teórica verdade. A verdade, que deve ser apenas colhida como flor que desabrocha natural, passa, assim, a ser criada e colocada como um prêmio a um vencedor, sendo submetida, nos tensos e excitantes momentos das cenas no tribunal, a uma carga de velhos preconceitos sobre temas sensíveis (fidelidade/traição, relacionamento aberto, bissexualidade, patriarcado, inocência e culpa) que permeiam as conhecidas formas de julgamentos moralizantes de nossa sociedade.
Esse emblemático ambiente da Justiça tão sujeito a falha, tão indiferente à matéria gente, tão cego da verdade, tão desconcertado diante da dúvida, é representado, principalmente, nas figuras das personagens do jovem promotor com sua lógica, por vezes, distorcida, e da burocrática juíza, ambos ávidos para verem coroadas a sua predisposição particular à compreensão dos fatos. A uma criança cega - e essa simbologia é genial! - coube o papel de relembrar aos doutos guardiães do bem e do mal social qual é o verdadeiro sentido de Justiça.
No entanto, é no transcorrer do dia a dia, na intimidade recôndita das personagens centrais, que a anatomia se dá de forma paulatina e profunda, revelando as mazelas e demônios dos indivíduos nas suas relações com os outros e consigo mesmos, diante da incapacidade de lidar com questões demasiado humanas e que podem levar qualquer um a quedas, como a intransponível sensação de fracasso pessoal, experimentada pelo personagem do marido Samuel, ou a impossibilidade de reconexao do casal assolado por mágoas, disputas, desconfiança, delimitando os vários territórios e "línguas" dentro de uma família.
Nessa hora, nós, os espectadores, somos envolvidos por essas circunstâncias humanas, nossas velhas conhecidas, e, sem perceber, deixamos de ter um lado na história e vemos somente a dor da tragédia que tocou nas vidas daquelas pessoas, que não têm sequer a oportunidade e o tempo para se dedicarem ao seu luto.
A essa altura do filme, está consumada a anatomia evocada no título e que vai muito além da literalidade que inicialmente se supõe. Nada é mais desequilibrante do que dissecar fragilidades, fraquezas e ambiguidades num espelho que se quebra diante de todos ou diante daqueles para quem gostaríamos de ter o nosso melhor reflexo.
As razões das quedas, que qualquer ser vivente sobre a terra pode conhecer e reconhecer, ao fim as sentimos escorrendo pela nossa face e caindo em gotas num abismo de encanto e susto regidos por uma trilha sonora belíssima que completa a grandeza da obra prima apresentada pela diretora. E o último abraço do filme não nos deixa sentir menos que isso.
Maria Taciano
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