terça-feira, 16 de março de 2021

"30"

 

Trintamos!

Trinta verões passaram por nós
Feitos e desfeitos
Nas águas de trinta outonos

E das quedas,
trinta vezes florescemos
Em trinta primaveras

Precedidas de inabaláveis
trinta invernos
De calores e frio
Nudez e agasalho

Que importa?

Anos, dias, estações
Num trem que não pretende
Tão logo parar

Trintamos, trintamos
E mais:
Trintemos! 

quinta-feira, 11 de março de 2021

Telefone Clonado


 Meu telefone foi clonado. Apenas percebi o fato, quando recebi esse recado seguido de uma foto de um  mapa de localização:

"Me encontre no ponto de abdução."

Tive de descer de minha estrela. E estou há um século, aqui, na Terra, esperando essa nave que não vem.

Pergunto a um transeunte se sempre o disco voador atrasa assim.

Sem resposta, o passante olha para mim e prossegue seu curso. Deve ir sempre à pé para casa. Que tolice a minha!

Aguardo já uma eternidade neste ponto de espera. Dou-me conta, então, que sou mesmo sem conserto acreditando em recados de celulares clonados.

Mas, sei lá, os extraterrestres deveriam parar de brincar assim com a gente...




segunda-feira, 1 de março de 2021

Em Fim

 




Morreu Denise. 

Morreu aquele artista. 

Morreu o velho japonês que cuidava das árvores frutíferas da praça pública. 

Morreu a moça velha, que passava as tardes fincada à janela não mais esperando. 

Morreu a cadela da menina acomodada ao pé da cadeira. 

Póstumo é o prémio do consagrado ator.

Póstuma é a defesa de tese do índio da universidade, morto doutor, 

Sucumbiu à desgraça branca. Morreu. 


Morreu o chefe da família tão temerosa de assaltos e mortes 

que elegeu, para sua proteção,

aquele que prometia armar os cidadãos da nação, 

para se protegerem do ladrâo. 

Bradou o déspota  'Morram!". Morreram.


Morrer anda na mala, na bolsa, no beijo.

É como o anúncio "Não saia de casa sem ele."

Morrer já não mais espreita, 

dança escancarado na aglomeração., 

entra em casa sem convite. 


Morrer está no sapato, no frasco do remédio falso. 

No atraso da vacina gota em gota...

Morrer virou a vida do avesso, de bruços. 

Morrer virou o mantra, que entoamos 

só uma vez, para sempre. 

E fim.


A Cidade do Adeus

Encontrou essa cidade, numa tarde lenta e quente, pesada como a chuva que se anunciava. 

Quando ali saltou, saber não sabia se era o lugar em que as coisas não se findavam. Apenas lhe tocou a esterilidade nos olhos vazios dos cidadãos que iam e vinham. E sentindo em si um crescente e igual vazio, estacionou. A enxurrada desse vazio arrastou tudo que ela trazia  de dor ou alegria. 

- Onde é aqui?  - perguntou ao motorista do caminhão..  

- Aqui pode lhe servir, dona, a senhora que disse que foge do adeus - respondeu em voz alta em meio riso. 

Ela saltou menos decidida que a sugestão do motorista; este que acelerou o veículo fazendo atrás de si um desenho de fumaça suspenso no ar. Estranhamente esse um gesto de adeus.

Que fosse o último que visse, pensou

E olhou para a mala concisa que trazia todo o adeus que lhe pertencia. A primeira despedida foi a do irmão, o pequeno, o "raspa de tacho", o que trazia luz à família tão migrante, tão perdida, tão dele dependente, a flor nascida naquele chão estrangeiro. Um dia se  foi, morreu e deixou a dor de um adeus sem fim. O segundo, logo atrás, foi o adeus da mãe, levada pela tristeza pela perda do filho, de tantos o mais querido. A mãe tão bonita que morreu dia a dia, na despedida anunciada como os rufos de um tambor de um condenado, condenando a todos com a sua iminente e definitiva partida. A terceira despedida se prolongou por lentos anos de um adeus solitário. Foi a da irmã perdida pelo tempo e pela vida, aquela que se foi sem dizer o porquê e que marcou sua ausência na sua presença constante, anunciada nas redes, contando sua nova vida. Seguidas às tais, vieram outras tantas fundas despedidas. No ventre, o filho que não vingou; a alienação do pai em seu esquecimento, a perda do grande amor, a perda de si mesma num lugar a que não mais pertencia.

Nem um adeus a mais haveria. Foi o que pressentiu da misteriosa fala do motorista dando ares de brincadeira, mas que afirmou "aqui não paro", ainda que ela sugerisse ao homem refrescar-se  na cidade, após longa estrada de viagem sob sol a pino e água escassa no cantil...

Nessa cidade sem adeus decidiu que fincaria a sua estaca de começos. A chuva anunciada desabou...



(continua em breve...)