sábado, 30 de maio de 2020

Conversando com Bukowski II - Revelações de Confinados *





Não posso escrever sobre o fora, se tudo agora se passa dentro.

Não tenho temperamentos de contar horas de espera, tampouco ter ciência do esperar, o que me impacienta. Não me apraz, como um condenado, contar as memórias de uma prisão, talvez porque nunca estivesse numa e, agora, prefiro não pensar em grades, grades de medo.
Mas como escrever sem contar, se contar alguma coisa não se desprende de uma necessária contagem cronológica? (Dia 01 - Acordei cheia de esperança e corri na sala; dia 02, ainda com esperança mas com dor no corpo da corrida de ontem; dia 03 tive um lampejo de extrema lucidez e quase me desesperei, passei o dia na cama; ... dia 50 estou quase acertando meu enésimo cronograma de rotina diária que não cumprirei e me angustiarei ..._)

- Não, amigo, essa marcação não me ajuda, espanta a minha musa criativa e já ando me assustando de perdê-la de vez. Tenho medo de pensar que ela nunca tenha existido (essa pandemia, segundo dizem, anda tão reveladora!).

Reinicio antigas leituras e nas mãos me cai justamente seu livro, uma espécie de diário, um diário pré-morte. Isso a um tempo me abre uma perspectiva de ideia e a um tempo me paralisa. Ainda não é esse tema de espera que me acalenta, a espera dela, a morte todo dia numa curva de um gráfico ascendente, piscando um olho pra você.

- Escrever sobre o que nos implica desde que nascemos e, justo agora, nesta fase em que tudo em si já é duvidoso e só nos surpreendemos quando não confirmamos a certeza de que ela, enfim, nos escolheu. Não seria óbvio demais escrever sobre a morte do nosso corpo, a morte da nossa coragem, das vidas outras que nem tivemos ou teremos tempo de conhecer?

Você me sorri amarga e ironicamente a dizer que eu ainda não entendia o que se passava e me saca essa:

- "Escrever é quando voo, escrever é quando começo incêndios. Escrever é quando tiro a morte do meu bolso esquerdo, atiro-a contra a parede e a pego de volta quando rebate."

Você foi genialmente cruel. Percebeu minha fraqueza ou defeito intransponíveis. Não estava para unguentos sobre a ferida de choronas.
Joguei seu livro longe. Começar assim seria o fim para mim, trair-me ilusões neste momento, já tão escassas em mim, sobre minha capacidade de escrita e tudo o mais. Isso seria a morte. E ei-la, de novo, aqui...
Tenho, então, uma súbita vontade de xingá-lo, de chamá-lo de velho bêbado, mas tudo isso seria tão infantil, quanto agressivo e mentiroso. Eu lhe digo quase em sussurro:

- Você é incrível. Me desculpe por invejar tanto você, esse sentimento rasteiro e vil, que revela querer tomar para si aquilo que não é seu senão no que toca na admiração que lhe causa.

Vejo seu rosto entre fumaças do cigarro e  um demorado silêncio sobrevém. O silêncio permanece, embora em minha mente tudo seja tumulto. Estou quase rendida, com uma ridícula vontade de chorar. Mas quando percebe que estou pronta a desabar, você me diz:

- "Os escritores são os mais difíceis de aguentar, nos livros ou ao vivo. E são piores ao vivo do que nos livros e isso é muito ruim. E nós adoramos falar mal uns dos outros. Como eu."

E arremata :

-"Há apenas um juiz final do que foi escrito, que é o escritor. Quando é influenciado pelos críticos, editores, leitores, está acabado".

Não sei ao certo se poderia tomar a mim esse qualificativo  de escritor ou se você, indo mais fundo na ferida, falava só de  si mesmo, o único escritor na cena. O que sei é que, de alguma forma, essa fala me fez menos pesada; poderíamos discorrer sobre qualquer assunto e de qualquer altura já que eu já estava seguramente alocada no chão. Então,  eu lhe disse:

- Descubro que sempre escrevi sobre as histórias em parte que eu vivi.. E havia certa literatura nessa escrita. Havia, de fato, mais: havia lirismo na vivência. Eu inventava a minha realidade para escrever sobre ela. Eu vivia para escrever.  Eu supunha que escrevesse para fugir da realidade, que escrever fosse necessariamente a porta de saída para outra realidade. Era o contrário: era a porta para entrar nela. Agora me sinto sem vida, não consigo escrever.

Você se agita, parece que, enfim, encontramos um lugar para começar. E pega o copo pousado na mesa, arrasta-o para junto de si e se torna distante como se estivesse revivendo um momento específico interno. Se bom ou ruim, não pude apreender, pois subitamente, você tomou um gole da bebida e disse:

- "Não há nada que impeça um homem de escrever, a não ser que ele impeça a si mesmo. Se um homem quer realmente escrever, ele o fará. A rejeição e o ridículo lhe darão mais força. (Segue uma sequência de tosses). "Não há perdas em escrever, faz seus dedos do pé rirem enquanto você dorme; faz você andar como um tigre; ilumina seus olhos e coloca você frente a frente com a Morte."

Foi daí que eu me lembrei de um inquietante sonho em que eu me encontrava numa cidade cheia de ladeiras, cidade festiva e eu buscava a entrada de um restaurante em que estivera. Não sei por que havia saído dele e todas as portas eram parecidas mas não me levavam a esse lugar pretendido. Quando encontrei a porta mais parecida, ela me levou para baixo e para baixo e, embora sendo um restaurante, aquele lugar não me agradou e acordei com a sensação de que não sairia nunca dele:

- Sabe, Buck - posso chamá-lo assim? -, a minha escrita é uma busca de si mesma, ou eu me busco a mim não por ela, mas escondendo-me nela. Eu vou na frente, sem olhar pra trás, para que ela me siga. Quando o faz e me alcança,  me surpreende como se eu não soubesse que ela esteve ali sempre na corrida, na captura de mim. Devo confessar que, quando isso acontece, tenho do que escrevi ciúme e amor - o tal amor possessivo e tenebroso. É como se não tivesse nascido de mim, mas dela mesma, a escrita.

_ "Mas toda a minha vida tem sido uma questão de lutar por uma simples hora para fazer o que eu quero fazer. Tem sempre alguma coisa atrapalhando a minha chegada a mim mesmo." - você completa como uma conclusão.

 Ficamos ambos em silêncio sem nos olhar direito, como dois jogadores de cartas que não querem revelar nenhum sinal.

Pensei que, então, era disso que se tratava. É saber moldar qualquer matéria prima que se tenha nas mãos. Falta-me a magia do artesanato ou o fascínio por ele?

Tenho uma alma fascinada pela natureza humana. Gosto de escrever sobre gente, sobretudo mulheres e seus olhares caminhando por toda a galeria de sentidos e sentimentos emaranhados. Entender a dor do caule que perdeu a flor para o vento de outono.. Com essa peste eu não vejo as pessoas senão em suas imagens projetadas, roteirizadas. Pessoas ao vivo não podem se proteger de todas as perspectivas de olhares, aquela que lhes pega a essência sem mesmo saberem que foram flagradas. A  internet, algoritmos, redes sociais, os sorrisos ou a infelicidade em ondas coletivas. Por onde posso ver com aquele olhar surpreendente? Esse distanciamento no que dizem que aproxima, isso me confunde. Eis nova vida! Mas também isso pressupõe uma uma morte. "Ela, de novo", pensei.

- Talvez eu já tenha escrito tudo o que eu vivi. Estou paralisada na entrada desse novo viver.

Você apenas me olha e continuo:

- Tenho a impressão de que, com a quarentena, as pessoas estão se transportando para a vida nova com o mesmo estilo de pensar e ver da vida velha. Apenas mudaram de casa. Sabe que transam, namoram, fazem negócios, atrasam-se em reuniões, tudo pela internet?

_"Por que há tão poucas pessoas interessantes? Em milhões, por que não há algumas? Devemos continuar a viver com essa espécie insípida e tediosa?"

Pego minha lista de contatos em meu celular, deslizo o dedo nas telas que se apresentam. Até que não pouco, até que não muitos:

- Sabe que, em minha lista telefônica, em sua grande parte, só há nomes de pessoas que eu, um dia , abracei? Depois que estiveram nela, nunca mais.

Na verdade, eu é que nunca estive em lugar algum. Sempre saía de fininho, querendo sempre estar em lugar diferente. Agora que posso "estar" em toda parte, eu não sei pra onde ir ou fugir. Fugir também era meu desejo : ir embora. Agora basta apertar um botão pra eu sumir de vez, mas tenho medo.

 - " Em parte, é o poder da rotina, um poder que mantém a maioria de nós. Um lugar para ir, uma coisa para fazer. Somos treinados desde o começo. Sair, entrar. Talvez haja alguma coisa interessante lá."

- Talvez.

Tive frio. Dera-me conta de que já se passava das quatro horas da manhã. Aquele misterioso galo, que eu não sei de onde canta, em plena capital paulista, fez-me despertar do transe. Ao lado, um copo de uísque intacto ( havia colocado ali para acompanhar você). Eu estivera bêbada sem ele; supus que foi somente seu hálito que me tivesse lançado a este estado letárgico. Sentia-me sozinha como você. Sempre estive, sempre estivemos.

- Continuamos nossa conversa depois? - perguntei.

Você girou o dedo sobre a boca de seu copo de uísque. Não me olhou. Estava ausente.

Muito frio. Eu queria agora somente o aconchego quente da cama aquecida pelo corpo de meu homem, que há muito dormia em nosso quarto.

Hesitei em levantar-me, mas o fiz. Sem olhar para mim, você dirigiu seus olhos para o teclado e o botão "on/off" do notebook. Não sabia se queria mesmo desligar tudo, apertar o botão ou deixar como estava, para, quem sabe, tentar de novo amanhã. Esperei... O galo longínquo cantou novamente. Uma promessa de amanhã, de vida? Não sei. Fiz o meu registro. Foi sobre ela que falamos, enfim. Por que não?

(...)



* As falas atribuídas a Bukowski neste diálogo, apresentadas entre aspas, são citações extraídas de seu livro "O Capitão Saiu para o Almoço e os Marinheiros Tomaram Conta do Navio"; tradução de Bettina Gertum Becker, L&PM Editores, Porto Alegre, 2018.









quarta-feira, 20 de maio de 2020

De todas as Perdas

Vivemos um tempo terrível, que não é só de agora com essa doença mundial e fatal. Há outra doença mundial e fatal que nos assola há algum tempo, e que, no Brasil, em especial,  fez emergir um lado horroroso que, por mais que soubéssemos que existisse, tentávamos sufocar a duras penas. Tal doença é a doença do ódio.


O ódio que nos acomete, não é contraposto pelo amor, mas por uma espécie de anti-ódio, que é um ódio contrário ao outro ódio.


Qualquer de suas faces nos desumaniza, nos faz mal, revolve os nossos demônios, nos sufoca, retém no meio do caminho os nossos sentimentos mais elevados e genuínos, porque temos de julgá-los antes de deixar que  fluam.


E, vítimas desses sintomas, contemos nosso espontâneo encantamento diante de uma expressão de arte, para saber primeiro de seu criador, em que "lado" se situa,  e perdemos genialidades sobre-humanas, perdemos profundidade, perdemos, pior, a leveza do querer bem sem razão, essas "sem razões do amor", tão bem declinadas nos versos de Drummond, só porque somos humanos dotados de uma capacidade inerente e animalesca - sim, animal, institiva, quem diria - de simplesmente amar, coisa que a "razão" já não anda processando.


De todas as perdas, a perda: a perda de enxergar o tamanho do que se perde e o quanto fica disso. 


Relativizamos hoje, doentes,  até a perda pela morte que, por mais espiritualizada que possa ser enxergada, é sim um estado de ausência, de contato perdido, de extinção da riqueza das boas surpresas do que é vivo, de doer "de tanto medir a distância, saber que não vou te tocar além da lembrança."(Beto Guedes)


Sinto uma dor enorme pela morte do Dimenstein, com sua sensibilidade fora da curva no jornalismo que eu ouvia no meu radinho do carro toda manhã indo pro trabalho, em tempos tão distantes e simples, de semeaduras, julgava.


Por isso, entendo a poetisa  Elisa Lucinda, que, em homenagem ao escritor, falou em poesia sobre o fato de sobrevivermos, numa luta heroica de tentar e tentar. Ela o fez em homenagem principalmente à luta de Dimenstein para sobreviver a uma doença do corpo e sobreviver em todos os aspectos do viver e ser.


Cada perda importa, e muito, e é por elas e por essa de Gilberto Dimenstein e também por toda a dor que significa perder humanos e humanidades que escrevo estas palavras em pranto, esse pranto há tanto tempo contido para não "ser fraca", humana.


Ninguém me perguntou por que ou por quem, mas que eu saiba e deixe, enfim, que  meus sinos badalem.  Eles dobram, redobram hoje por todas as perdas e assim é um modo de eu me achar.


Vá em paz. E fiquemos nós, enquanto aqui, pelo amor.


Maria Angélica Taciano

terça-feira, 5 de maio de 2020

As suas Baladas

Ela ouviu tocar aquela balada de que ele gostava e que, como muitas outras, era por ele reproduzida  numa forma própria de delatar algum de seus tantos amores e desencantos.
Então, ela se lembrou de que com ele ouvia essas canções com menos encantamento do que um esforço em buscar, entre letra e melodia, uma única nota que contasse do amor dele por ela.

Sem ter nunca essa certeza, doía-lhe não participar da beleza que aquele homem exalava de sua alma precisa, seu basto cabelo cheio de vida sem ela, suas canções e poesia.

Mesmo depois de passado tanto, já tanto tempo de sua partida, ainda o vê nítido nas mesmas baladas que tocam no rádio e que ela ouve certa de que sua ausência é para sempre. É chegado o tempo de serem apenas baladas, canções que lhe fazem lembrar-se dele. E só.

A história deles dois, se é que houve, evaporara-se como fumaça, desfazendo seu indecifrável desenho no ar ou pendurada em sonhos fustigados por já cansado anseio de ser ela, uma vez, a mulher de suas baladas de amor.

E é entre fumaças que, então, a delicadeza da poesia musicada e de tão apurada escolha (como ele sabia!) desperta nela uma antiga dança. As mãos no próprio corpo, tão de si mesmo esquecido, reencontram o clímax da saudade cujo paradeiro se supunha também perdido.  E, no palco, a música devolve um tempo à alucinada bailarina, que descobre - quem diria! - que esse seu corpo guardou suas danças de quadris e suspiros, numa exaltação além do cansaço desse amor inacabado. Enfim, descobre também que é ele quem ainda povoa toda a vertigem nascida dessa elegia à memória e à música...

Houve o seu amor e ela o ouve entre os chiados de um rádio! E das baladas por ele outrora escolhidas, seja por uma sua descoberta ou por invenção, sabe agora que eram, sim, todas para ela.

Foto: Sérgio Larraín

domingo, 3 de maio de 2020

ESTE TEXTO NÃO CONTA MORTES, CONTA VIDA.


Não sabemos quanto tempo será. O que importa é que todo o tempo seja de vida.

A pandemia, de um modo simbólico (ou não), é a morte e a vida que resolveram conversar conosco um papo franco. Antes, simplesmente ignorávamos uma e outra, agora não mais.

"Cada dia pode ser o último",  dizíamos isso sem muita crença, tal a nossa capacidade de evitar uma verdade escancarada. E prosseguíamos em nosso barco sem  preocupar em olhar a viagem e, muito menos, de cuidar de guardar a moeda ao barqueiro.

Agora um tanto assustados, proclamamos, então, como uma repetição para nos acalentar, que tudo será diferente e que será melhor. E acreditamos mesmo que assim será! Mas, no fundo,  sempre está o medo. Será que estamos preparados para isso? Vamos saber viver esse novo? Haverá tempo para nos refazermos e adaptarmos? E a pergunta mais difícil e recorrente: estaremos nesse novo mundo?

Impotentes, quem diria.

E nos projetamos num futuro para evitar o presente, este agora tão difícil e tão sem máscaras, embora de máscaras precisemos para permanecer nele. A vida, em si mesma, um paradoxo.

É imenso o significado disso! Toda a humanidade foi colocada nesse despertar, nesse estalo para o que sempre foi e é.
A novidade tão somente é a nossa presença desperta para a página a virar.

Medo, luto, choro, alegria, fuga, inconformismo, raiva, descrença, esperança, amor, desejo, cansaço, dúvida, apatia, conexão, criatividade, bloqueio criativo, espanto, perdão, susto... Todos esses estados alvoroçam-se em nós a seu tempo, intensidade e necessidade e são legítimos, como legítimo é o movimento de deixá-los fluir sem precisar entender.  E  essa conversa obrigatória e diuturna com a vida e a morte faz-me, enfim, apreender que a única razão de existir é simplesmente estar e ser. Como o sol que amanhece e entardece e a noite que vem, apenas ser.

Assim, já não me servem as despedidas antecipadas, velhas companheiras de  velhas melancolias. No livro das páginas que viram incessantemente - aprendi e vejo agora -  a história é a da celebração, sem tempo medido, das presenças, dos presentes; a sempre surpresa feliz dos reencontros de cada dia, todo dia. Tudo é reencontro e, ao mesmo tempo, perenidade.

Além de respirar e alimentar e ansiar e sonhar, viver tem de ser também restabelecer toda a multiplicidade de sentimentos tantos que nos façam pulsar. Sentir não pode estar, como nosso corpo, momentaneamente, enquadrado num espaço limitado de nossa casa ou qualquer outro lugar de proteção a que recorremos, neste momento. Que não nos restrinjamos a nostalgias, saudades, expectativas. Nem tempo passado, nem tempo futuro: viver sempre foi agora, sentir é agora. Sem pressas, sem atrasos, apenas agora.

A vida está em toda parte quando já esteve dentro de nós.

Tão clara, assim, a inexistência da dicotomia vida e morte, quando tudo é encantamento, como bem definiu o escritor dos sertões de Minas Gerais! (Guimarães Rosa que soube tão bem juntar a rigidez da aridez geográfica com a sutileza de flor das almas sertanejas.).

E simplesmente me debruço à  janela a contemplar a tarde que é linda. Já vejo a primeira  estrela a se apresentar; desconfio que a seu lado paira um suspeito disco voador...

Ovnis e estrelas pulsam no céu, este céu que se movimenta em mil cores na celebração de mais um reencontro do dia com a noite.

...

Embora se possa pensar que já não, a vida ainda está lá fora.  E há vida também dentro desta janela, dentro das janelas. E isso conta, e muito.