* As falas atribuídas a Bukowski neste diálogo, apresentadas entre aspas, são citações extraídas de seu livro "O Capitão Saiu para o Almoço e os Marinheiros Tomaram Conta do Navio"; tradução de Bettina Gertum Becker, L&PM Editores, Porto Alegre, 2018.
sábado, 30 de maio de 2020
Conversando com Bukowski II - Revelações de Confinados *
* As falas atribuídas a Bukowski neste diálogo, apresentadas entre aspas, são citações extraídas de seu livro "O Capitão Saiu para o Almoço e os Marinheiros Tomaram Conta do Navio"; tradução de Bettina Gertum Becker, L&PM Editores, Porto Alegre, 2018.
quarta-feira, 20 de maio de 2020
De todas as Perdas
Vivemos um tempo terrível, que não é só de agora com essa doença mundial e fatal. Há outra doença mundial e fatal que nos assola há algum tempo, e que, no Brasil, em especial, fez emergir um lado horroroso que, por mais que soubéssemos que existisse, tentávamos sufocar a duras penas. Tal doença é a doença do ódio.
O ódio que nos acomete, não é contraposto pelo amor, mas por uma espécie de anti-ódio, que é um ódio contrário ao outro ódio.
Qualquer de suas faces nos desumaniza, nos faz mal, revolve os nossos demônios, nos sufoca, retém no meio do caminho os nossos sentimentos mais elevados e genuínos, porque temos de julgá-los antes de deixar que fluam.
E, vítimas desses sintomas, contemos nosso espontâneo encantamento diante de uma expressão de arte, para saber primeiro de seu criador, em que "lado" se situa, e perdemos genialidades sobre-humanas, perdemos profundidade, perdemos, pior, a leveza do querer bem sem razão, essas "sem razões do amor", tão bem declinadas nos versos de Drummond, só porque somos humanos dotados de uma capacidade inerente e animalesca - sim, animal, institiva, quem diria - de simplesmente amar, coisa que a "razão" já não anda processando.
De todas as perdas, a perda: a perda de enxergar o tamanho do que se perde e o quanto fica disso.
Relativizamos hoje, doentes, até a perda pela morte que, por mais espiritualizada que possa ser enxergada, é sim um estado de ausência, de contato perdido, de extinção da riqueza das boas surpresas do que é vivo, de doer "de tanto medir a distância, saber que não vou te tocar além da lembrança."(Beto Guedes)
Sinto uma dor enorme pela morte do Dimenstein, com sua sensibilidade fora da curva no jornalismo que eu ouvia no meu radinho do carro toda manhã indo pro trabalho, em tempos tão distantes e simples, de semeaduras, julgava.
Por isso, entendo a poetisa Elisa Lucinda, que, em homenagem ao escritor, falou em poesia sobre o fato de sobrevivermos, numa luta heroica de tentar e tentar. Ela o fez em homenagem principalmente à luta de Dimenstein para sobreviver a uma doença do corpo e sobreviver em todos os aspectos do viver e ser.
Cada perda importa, e muito, e é por elas e por essa de Gilberto Dimenstein e também por toda a dor que significa perder humanos e humanidades que escrevo estas palavras em pranto, esse pranto há tanto tempo contido para não "ser fraca", humana.
Ninguém me perguntou por que ou por quem, mas que eu saiba e deixe, enfim, que meus sinos badalem. Eles dobram, redobram hoje por todas as perdas e assim é um modo de eu me achar.
Vá em paz. E fiquemos nós, enquanto aqui, pelo amor.
Maria Angélica Taciano
terça-feira, 5 de maio de 2020
As suas Baladas
domingo, 3 de maio de 2020
ESTE TEXTO NÃO CONTA MORTES, CONTA VIDA.
Não sabemos quanto tempo será. O que importa é que todo o tempo seja de vida.
A pandemia, de um modo simbólico (ou não), é a morte e a vida que resolveram conversar conosco um papo franco. Antes, simplesmente ignorávamos uma e outra, agora não mais.
"Cada dia pode ser o último", dizíamos isso sem muita crença, tal a nossa capacidade de evitar uma verdade escancarada. E prosseguíamos em nosso barco sem preocupar em olhar a viagem e, muito menos, de cuidar de guardar a moeda ao barqueiro.
Agora um tanto assustados, proclamamos, então, como uma repetição para nos acalentar, que tudo será diferente e que será melhor. E acreditamos mesmo que assim será! Mas, no fundo, sempre está o medo. Será que estamos preparados para isso? Vamos saber viver esse novo? Haverá tempo para nos refazermos e adaptarmos? E a pergunta mais difícil e recorrente: estaremos nesse novo mundo?
Impotentes, quem diria.
E nos projetamos num futuro para evitar o presente, este agora tão difícil e tão sem máscaras, embora de máscaras precisemos para permanecer nele. A vida, em si mesma, um paradoxo.
É imenso o significado disso! Toda a humanidade foi colocada nesse despertar, nesse estalo para o que sempre foi e é.
A novidade tão somente é a nossa presença desperta para a página a virar.
Medo, luto, choro, alegria, fuga, inconformismo, raiva, descrença, esperança, amor, desejo, cansaço, dúvida, apatia, conexão, criatividade, bloqueio criativo, espanto, perdão, susto... Todos esses estados alvoroçam-se em nós a seu tempo, intensidade e necessidade e são legítimos, como legítimo é o movimento de deixá-los fluir sem precisar entender. E essa conversa obrigatória e diuturna com a vida e a morte faz-me, enfim, apreender que a única razão de existir é simplesmente estar e ser. Como o sol que amanhece e entardece e a noite que vem, apenas ser.
Assim, já não me servem as despedidas antecipadas, velhas companheiras de velhas melancolias. No livro das páginas que viram incessantemente - aprendi e vejo agora - a história é a da celebração, sem tempo medido, das presenças, dos presentes; a sempre surpresa feliz dos reencontros de cada dia, todo dia. Tudo é reencontro e, ao mesmo tempo, perenidade.
Além de respirar e alimentar e ansiar e sonhar, viver tem de ser também restabelecer toda a multiplicidade de sentimentos tantos que nos façam pulsar. Sentir não pode estar, como nosso corpo, momentaneamente, enquadrado num espaço limitado de nossa casa ou qualquer outro lugar de proteção a que recorremos, neste momento. Que não nos restrinjamos a nostalgias, saudades, expectativas. Nem tempo passado, nem tempo futuro: viver sempre foi agora, sentir é agora. Sem pressas, sem atrasos, apenas agora.
A vida está em toda parte quando já esteve dentro de nós.
Tão clara, assim, a inexistência da dicotomia vida e morte, quando tudo é encantamento, como bem definiu o escritor dos sertões de Minas Gerais! (Guimarães Rosa que soube tão bem juntar a rigidez da aridez geográfica com a sutileza de flor das almas sertanejas.).
E simplesmente me debruço à janela a contemplar a tarde que é linda. Já vejo a primeira estrela a se apresentar; desconfio que a seu lado paira um suspeito disco voador...
Ovnis e estrelas pulsam no céu, este céu que se movimenta em mil cores na celebração de mais um reencontro do dia com a noite.
...
Embora se possa pensar que já não, a vida ainda está lá fora. E há vida também dentro desta janela, dentro das janelas. E isso conta, e muito.