domingo, 29 de março de 2020

Nove minutos





queria vê-lo entrar
pela porta trazendo,
quem sabe, passados

passado em que
por tanto ficou
ou ainda estivesse

ou já tenha saído
sem nem perceber
em nove minutos
passados

no relógio o tempo
andando pra frente
pra ela

o tempo andando
pra trás há tantas
horas naquela espera

esperava o exato 
o momento
o exato momento

esquecido, largado
da lembrança de seu
sempre atraso
em outro tempo

Florada do amor perfeito


Teve tantos amores

e todos tão permanentes

que da morte lhe preocupava

não ter o seu caixão

para tanta mão

alças suficientes 




quarta-feira, 25 de março de 2020

Não Vou Sair

A doçura da melodia não esconde a melancolia pela imolação de escolher, entre tantas perdas, a menos dolorosa, e Celso Viáfora, em sua lindíssima canção 'Não Vou Sair", declina com mestria esse sentimento.

Vem dos tempos duríssimos em nosso país, os anos de chumbo, a canção que credita à inigualável beleza natural da pátria um acréscimo de razão aos sacrifícios de amor, de vida, de futuro para  se ir ficando, ficando por ela.

É difícil, de fato, a qualquer um partir quando os olhos batem no luar e a lua vai bater no mar. É poesia falando com poesia. A nossa terra é uma poesia!

Sempre senti o sentimento dessa música, mesmo quando era uma canção que, então, para mim, falava de tempos remotos. E mesmo assim doíam as dores da terra sofrida, dos amores adiados, das vidas perdidas, das chagas que pessoas tão próximas a mim presenciaram e tiveram.

Hoje olho de minha janela, privilegiada de alturas, esse céu anoitecendo, em tons de azul e alaranjado e essa estrela solitária piscando como um código Morse. E a tal canção de Viáfora já não me diz de passados.

Fito essa estrela mensageira que, como a lua convidativa da canção, vem nos dar razão para ficar. Ficarmos em casa, ficarmos em nós, ficarmos vivos, ficarmos por ela.

E, tão cansada, nossa terra pátria generosa afaga-nos ainda com seu belo sorriso doente como se deixasse de pedir socorro para si mesma e nos acalentasse deste nosso angustioso presente.

Tão bonita, tão violada essa tão  gentil senhora com seu formato geográfico de  um enorme coração! Adoeceu em seu corpo, em seu espírito, em seu ventre e ainda nos concede, com sua graça, o bálsamo de um ínfimo esquecimento.

Mas me lembro. Lembro de te pedir perdão, o perdão de todos os filhos seus que te levaram a isso.  E me ponho à janela a contemplar o céu, agora escuro de uma escuridão meio triste. Nele a estrela já não há, não há o luar, nem lua batendo no mar, mas por você eu vou ficando... viva.

sábado, 21 de março de 2020

VEZES E VEZES: VIVER







Quando menina, eu entendia que as pessoas se dividiam em duas categorias: as que são de humanas e as que são de exatas. Mais tarde, infelizmente, vim descobrir que as pessoas se dividem em muitas mais categorias. E hoje acredito que as pessoas apenas pensam que se dividem.

Num filme bem despretensioso que vi ontem na Netflix, o "Viver Duas Vezes"*, o tardio apaixonado matemático faz uma descrição profundamente humana de uma pessoa, por meio da matemática. Ele diz mais ou menos assim (em minhas próprias palavras):
"a matemática é uma ciência exata,  racional, lógica, totalmente previsível, até se conhecer o número "pi". "Pi" é um número misterioso, infinito, que define seu próprio caminho sem estar de acordo com convenções.
Margarida era isso, e disse-me, um dia, que números são apenas mais uma forma de expressão. Ensinou-me a magia da vida na matemática..."

É de tirar o ar, não é?!

Na língua hebraica, contou-me certa vez um amigo, os números são a representação do estágio da alma das pessoas, ora em queda (6), ora em ascensão (9), mas sempre em busca da unidade divina que é o zero.  A biografia de Hawking veio desmistificar um pouco mais, para mim,  a ciência exata, e, então,  passei a olhar as estrelas como números que brilham e que caem como gotas de letras na nossa poesia.

Começo a crer, do alto de minhas indagações e sem muito cálculo, que existir é uma equação com um monte de letras e números, mais em busca de sorver a delícia do caminho de tentar resolvê-la com seus mais e menos elevados à potência, numa curva de xyz, do que de se chegar ao resultado e ponto final.

Sejamos, então, apenas  "pi" e atravessemos nosso mar de viver dividindo, se preciso, nosso barco até com um tigre de bengala**, ajudando-nos uns aos outros sem perder nossa natureza de número ou letra, tanto faz, porque, na verdade, tudo é magia, misteriosamente, magia.

*Viver Duas Vezes;  Maria Rípoli, 2019

**As Aventuras de Pi; Ang Lee, 2012

quinta-feira, 5 de março de 2020

Butoh






Aprendeu a dançar
Dançava , dançava
Ninguém mais sabia
Se seu corpo contorcido
e sua face compungida
Eram dor, alegria ou nada
mais de uma estética veleidade
Deixava-se ir, dançando
E ao vê-la bailando
Todos diziam que lá se ia
Em sua folia dona Felicidade
Dançava seu riso e seu choro
A causa, indiferente, já tanto fazia
Dançava a deleitar as gentes
Dançava como remédio ou gentileza
Mas acima de tudo dançava
para fazer mais leve
Todo o peso de tanta tristeza.


Crédito...Andrea Mohin / The New York Times