sábado, 31 de agosto de 2019

Décimo Segundo





Passou a vida inteira a esperá-lo chegar... Ele nunca chegou.
Foi numa noite, depois de espichar a orelha para cinquenta elevadores em subidas e descidas que veio perceber que, na corda dessa espera de vem não vem, tremia seu coração, exposto, pesado, um só emaranhado de não vida. Era o destino tecendo agonia ou alegria no décimo de segundo entre o apertar do botão e o deslizar das cordas daquele vagão.
Desesperou-se como nunca, nesse dia. Era como se tivesse recebido a pior notícia do mundo, aquela sempre aguardada e nunca querida. Mas se sentia pronta como que tendo o pino da granada,  tentadoramente, enroscado em seu dedo. O triunfo da verdade explodindo dentro de si como o impacto irreversível da bomba H no Japão. Aquele instante que muda tudo... E a opressão de seu peito, tão silente e deletéria, começou a desfazer-se na linha puxada  de uma meada, que já trouxe tanta coisa e gente, na linha rodante de um elevador que trazia todos, menos ele que não vinha.
Ele nunca viria, compreendeu. Não mais esperaria.
Mas deixar de esperar também tinha seu preço. E ela que adquirira o hábito dessa espera, descobria que havia nela muitas outras. E o vazio dessa que deixava de existir se preenchia dessas tantas, porque, por hábito ou essência, era feita de esperar. Talvez, nunca tenha querido  de fato que ele chegasse. Era uma espera só sua, que  em nada mais tocava nele.
Soube assim que as linhas estavam, agora, em suas mãos e ela é quem teceria seu tempo, seu desejo, sua espera. Só dela.
Pôs-se na janela do apartamento, décimo segundo andar, estratégica altura de voar e de uma longa viagem de um elevador que não se sabe o que traz (ou se traz), mas que vai e vem carregando essencialmente esperas.
No entanto, com um sorriso no rosto, vestida de cor esperança, ao som da voz rouca de Belchior no aparelho sonoro, placidamente fitava o céu da noite se aprontando para o dia.  Um radioso dia prometia aquele festejo da aurora. E ela se punha exultante a esperar quem nunca precisaria chegar.
Andares abaixo do seu, outra janela se fechava após a parada de um elevador, luzes se apagaram,  um silêncio se instalou; lá também uma espera se findou.

quinta-feira, 29 de agosto de 2019

Entre nós

- Você não crê em Deus?
- Creio que sim.
- Não crê, caso contrário, não faria o que faz.
- E o que eu faço que me desacredita Deus?
- Comete o pecado da carne, incessantemente.
- Por isso não creio em Deus?
- Sim.
- Pois, então, por certo eu creio sim. Mais: Deus também crê em mim!
- Crê?
-  Ele e eu não cremos é no pecado.







terça-feira, 20 de agosto de 2019

Sinal verde

A imagem do moleque preto
com a placa "Tenho fome"
atravessa meu vidro fechado
e tantos vidros e corações fechados
nos carros, blindados.
O sinal verde vem dizer
para seguirmos indiferentes.
E a fome e o menino
sequer tiveram espaço
no espelho retrovisor.
Passou. A vida prossegue
e rezamos a Deus, agradecidos,
pelo dia reto, sem os atropelos
que entravam seu trânsito.
Os automóveis seguem em
obcecada procissão
passando por bares, calçadas, tevês, risadas,
alívios de sinais verdes.
E a injustiça gargalha na face em transe
dos motoristas sérios,
e nas ruas, e nas TVs, e nas caras feias de juízes nus,
e no odor das mensagens de motor.
A injustiça está consumada, feita.
Não admite marcha à ré.
Segue o tal trânsito que não pode parar.
A vida continua e é isso que mais dói
no estômago vazio do menino nos semáforos 
com a placa "Tenho fome".
De quê?


A pulso viver

O que é o pulsar
senão uma sequência
de sustos.



sábado, 3 de agosto de 2019

Do Desejo ou Crônica do Inevitável


Encontravam-se, face a face, enfim,
e resolveram que se resolveriam
no apartamento dele.
De fato não se conheciam.
Ela o observava nos momentos
de descuido nele: nariz, perfil,
lábios em movimento na fala
que ela não ouvia.
Chamou-lhe especial atenção
as mãos grandes, os dedos
metendo-se no orifício da máquina
a buscar o troco do refrigerante
que não saciaria explícita sede
Ele lhe estendeu aquelas suas mãos.
"Enormes seus lindos dedos." - pensou.
"Se esse cara for um psicopata,
eu estou fodida... Muito bem fodida!"...
Ela tomou as mãos oferecidas; sorriram-se.
Conheciam-se então.
Seguiram juntos misturando-se à multidão...