terça-feira, 30 de julho de 2019

Vice versa


Se o avesso virasse o direito, o que veriam do meu avesso agora direito seriam muitas quinquilharias como pregos, cetro, vidros de garrafa estilhaçados, garrafas meio cheias, margaridas plantadas em vasos de barro, sóis fortes e dias melancólicos, noites ínfimas, felizes e estreladas, cadeados velhos, porta fechada, molho de chaves  em desuso, uma luneta apontada para o espaço, binóculo voltado para a janela do vizinho, uma feia voraz, um coelho assustado, um relógio parado, outro, enorme, girando ponteiros a altas velocidades, uma janela para uma estrada, uma corrente envolvendo uma caixa escrita 'fantasmas", mulheres desejosas, uma fonte, um menino comendo pão, um denso lago de areia movediça, um pássaro preto, um vale de borboletas, uma trilha serpentina entre muitas montanhas, uma praia branca e um céu azul, uma festa e uma guerra, um homem nu com os braços abertos e o rosto coberto, um hímen escorrido numa perna de velha, uma rede na brisa, uma gaita e uma cítara, uma fruta amarela na mão, vestido azul, lenço vermelho, uma casa rústica, uma linha de trem, o limiar de um abismo, um copo vazio diante de uma boca com sede, asas...

Do lado direito, agora avesso, haveria algo que se parecesse com paz e beleza, mas que não era.

Sinal dos Tempos

Hoje a solidão
Ilumina
A nossa cara
Com a luz do smartphone

A lua, o amor
Saudade
Flutuam nas ondas de um sinal
Sinal dos tempos

segunda-feira, 29 de julho de 2019

Regresso a Casa






Nem folguedos
foguetes, fanfarras
flores num ralo buquê
nada disso esperava

Bastava um sorriso
aquele algo que dissesse
que tudo mudou
ou que o do mesmo se adiava

Mas o que é de sempre
é sempre, logo ou tarde
E, outra vez, voltava querendo
o que nunca teve ou teria.
E isso também não mudou

terça-feira, 23 de julho de 2019

 



Quisera ter corpo

minh'alma banhada em sol

Para esquecer-se no langor

desta tarde preguiçosa

sábado, 20 de julho de 2019

Hasta la victoria!

Machado de Assis, escritor negro, brasileiro, a meu ver o maior escritor do mundo, faz com que somente a leitura completa de seu livro Quincas Borba, com cada peça da narrativa, nos permita decifrar o sentido da frase "ao vencedor, as batatas".
Nem estudos, debates, citações sobre essa filosofia por ele (através de Quincas Borba) chamada de Humanitismo, e nem mesmo a alegoria da guerra pelas batatas, narrada no livro, são suficientes para nos levar à plena apreensão do sentido dessa frase.Qual! Só quem pode explicar as profundezas alcançadas por Machado de Assis é Machado de Assis. E ele o faz, sem eufemismos.
Ao vencedor, as batatas.
Não se compreende a filosofia resumida nessa locução sem estar nu para aceitar que nós, humanamente (e desgraçadamente?), a vivenciamos.Há nela a mesma grandeza, e insofismável e indeclinável revelação da alma humana, que há na frase de Jesus "quem nunca pecou que atire a primeira pedra", e pedras em forma de armas morais foram rolando ao chão, porque nem as pedras aceitariam tamanha mentira da autoafirmação de inocência daquelas almas por si mesmas condenadas.
A vida é uma árdua e sangrenta luta pelas batatas. E não espere nada dela que não seja as batatas aos vitoriosos. Para todo o sempre e sempre, só as terão os vitoriosos.Morte aos deuses!
Que sejam sacrificados os fracos, covardes!, gritou Nietzsche. Nem maçã envenenada de saber, nem maná caindo do céu, mas batatas!
A vida é luta, com derrota ou vitória, e as batatas. Para tê-las, à vitória. "Siempre".

quarta-feira, 17 de julho de 2019

A BORBOLETA E O CROCODILO (FÁBULA DE UM QUASE PRAZER)




Ele é feroz e está sempre preparado para o ataque e autodefesa. É mortalmente perigoso em seu habitat, mas capitula facilmente fora dele.  Se apanha a presa, no entanto, devora-a sem piedade.

Ela tem um tempo curto e nem sabe que deveria vivê-lo em sua intensidade, mas o faz. É frágil, colorida, leve e inconsequente.

Ela pousou sobre ele. A cena é meio disforme e estanha no princípio, mas, aos poucos, vai-se tornando bela pelo paradoxo colossal das duas peças da combinação.

Ele repousa e aceita aquele afago e deixa-se tocar, também, pelo calor do sol, da água morna do rio. Tudo está quieto... Seus olhos se fecham, mas não trazem a escuridão que lhe permita a entrega ao descanso.

Ela ainda está pousada sobre ele e uma leve brisa logo agitará suas asas e a levará a outro voo. Nunca se saberá se ele perceberá a sua partida: ela tão delicada sobre uma pele tão endurecida. Nunca se saberá se lhe será indiferente a despedida ou se indiferente será qualquer tentativa de fazê-la ficar.

Ele continuará imóvel; seus olhos não abrirão, mas brilharão, talvez, uma lágrima. Talvez.

Ficará ali, aceitando e sorvendo o calor do sol, a água morna... Continuará crocodilo por muito ainda, até o fim.

Ela, a qualquer tempo, pouco tempo, já não será; atingirá, enfim, sua metamorfose e se tornará  flor ou luz.

                                                                              (junho/2013)


Imagem: foto de Mark Cowan, no Amazonas - Brasil.

terça-feira, 16 de julho de 2019

Vai ser outro dia



Beatles Forever.
Elvis não morreu.
Lula livre.
Do sentimento à ideia e à frase na camiseta, a vida contínua continua. E o tempo faz esquecer, se não o aperto, a causa do aperto no peito. E todo aperto se normaliza em meio a tantos apertos normais, na vida, no ônibus, no bolso, na cova.
"- Uma banda...
- Beatles Forever.
- Uma crença...
- Elvis não morreu.
- Uma saudade...
- Lula livre... Traga outra caipirinha, garçom, que hoje é sábado e amanhã...'vai ser outro dia... laralá"

segunda-feira, 8 de julho de 2019

Graças a Deus ou Ladainha dos Privilégios

Graças a Deus
Que não sou
Aquele menino importunando num farol
Pedindo dinheiro pro seu pão

Graças a Deus
Sou filha, mãe, pai
De almas benditas
Que não sentem a dor do menino
nem fome de pão

Graças a Deus
Não durmo na rua
flagelando os passantes nas noites
descobertas de proteção e calor

Graças a Deus
Sou filha, mãe, pai
De almas benditas
que têm teto e merecem
passagem, coberta e calor

Graças a Deus
homens fardados armados de ódio
não invadem meu lar a roubar
as vidas baratas de meus filhos

Graças a Deus
sou filha, mãe, pai
de almas benditas
que obedecem e aplaudem a lei
que não protege seus filhos

Graças a Deus
meu corpo doente
tem médico e leito e salvação
com um preço pago num boleto

Graças a Deus
sou filha, mãe, pai
de almas benditas
que não buscam o favor
de um SUS sem boleto

Graças a Deus
tenho meu trabalho
sem direitos antigos e danosos
que só usurpavam o patrão

Graças a Deus
sou filha, mãe, pai
De almas benditas
que contribuem para o progresso
da nação e do patrão

Graças a Deus
eu posso aplaudir a injustiça
que não serve em mim
mas cabe aos maus que odeio

Graças a Deus
sou filha, mãe e pai
de almas benditas
que aceitam, aceitam, aceitam
e que a si e aos outros odeiam.
Gratidão.

segunda-feira, 1 de julho de 2019