- Eu queria ajudar, fazer alguma coisa...
E fez-se um certo silêncio no pátio, uma clara perplexidade de vê-la ali tão dissonante com aquele lugar, chegando assim, sem ninguém chamar.
Ela um pouco desajeitada, tentando dar naturalidade àquela abordagem tão repentina, continuou, em meio ao silêncio:
- Quero muito ajudar – e em total revelação prosseguiu – preciso fazer algo por eles. Não posso viver assim.
Sob o olhar incrédulo de todos, em pouco tempo soube que não poderia ficar. Não conseguiam dar crédito a seu diáfano semblante, àqueles olhos translúcidos – como eram transparentes! - e mãos delicadas que carregavam, num abraço apertado, um livro-bengala. Não, as mazelas de ali necessitavam algumas chagas na alma e estas, ah, decerto, ela não as teria o bastante!
- Só tenho a oferecer o meu amor; acho que nada além – sorriu desconcertada, abraçou o livro e saiu, deixando um rápido silêncio atrás de si e olhos que guardariam por algum tempo o delicado florido daquela blusa, a saia rosa-claro rodada, o reflexo vermelho de seus cabelos.
Na rua, andando com visível desapontamento, vencida mais uma vez por sua própria incompreensão, sentou-se no banco da praça e ficou folheando o livro que trazia. Um menino maltrapilho sentou-se perto e pediu-lhe dinheiro para comer. Ela respondeu que não tinha, que só tinha aquele livro com figuras bonitas de algum lugar distante que nem ela conhecia. Ofereceu-o a ele e aqueles olhos translúcidos faiscavam de alegria no gesto daquela sincera oferta.
Não era o que o menino esperava e este, dando de ombros, disse que um livro não mataria sua fome e se foi.
Mais tarde, ela chega a seu recanto. Sua mãe lhe pergunta por onde havia andado e ela responde que tentou dar o seu amor, mas percebeu que até o amor não é aceito em qualquer lugar.
- Que pena! – tirou a saia rosa e a blusa florida que tinha recebido de Natal, guardou-as num saco e pôs seu vestidinho sujo e surrado de sempre. Deitou-se em seu pano de estopa ao lado da mãe e irmãos e, como tinha fome e nada para comer, abriu o livro com as figuras dos lugares lindos nas fotos e inventou histórias para os pequenos.
Naquela noite, sob o pontilhão, muitos moradores de rua dormiam ao som das buzinas e dos motores de carros, mas aquela menina de olhos translúcidos e cabelos vermelhos viajava a mundos desconhecidos e cheios de esperança retratados nas fotos de um livro. Nesse êxtase, não havia lugar para enganos, preconceitos e fome. Havia uma menina sob uma ponte com um livro nas mãos e amor no coração, amor que era só o que ela podia dar...
(Fotografia: Steve McCurry)
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