segunda-feira, 16 de junho de 2014

DIÁFANA


Vejo você debruçar uma braçada de margaridas sobre a pia da cozinha. Eu, sentada e calada, fito suas mãos grandes tratarem com tanto cuidado aquelas flores em espera. 
Meu olhar viaja pelo contorno de seus braços morenos, seu pescoço, seus lábios bem desenhados, o prateado de seus cabelos. Eu havia me esquecido de quanta beleza há em você.
No quase silêncio da cozinha, sinto o afago morno da sua presença misturado ao odor fresco das flores e ao barulho da água preguiçosa enchendo o pote. Você sussurra algo parecido a uma canção... Rompo esse quase silêncio e falo laconicamente de algum fantasma que me aflige, como costumava fazer, de menina,  rodeando-a em seus afazeres, ali, na mesma cozinha. Você, como de costume, ralha comigo: " - Deixa de bobagem, Maria Angélica!", fazendo pequeno o medo que você toma de mim para si. Baixo a cabeça, em sinal de acolhimento, e ponho, em meus cabelos, uma margarida perdida das outras. Você, generosamente, me dá um olhar de aprovação que se demora entre nós e eu me lembro, também, de como seus olhos são tão verdes!
O ritual do arranjo está quase no fim. Você recolhe o último ramo da pia e o coloca na posição mais precisa do buquê. Singelo, perfeito! E eu me lembro de como suas flores arranjadas eram de uma delicadeza sem igual. Nunca soube fazê-lo com tal mestria. Sorrio e você me sorri por detrás de seu vaso. 
Antes que você divise a porta da cozinha levando a sua obra para outro lugar, eu fecho os olhos para manter sua imagem em minha retina. Sei que você não voltará...
Abro os olhos, você se foi. Perdura, em meus pulmões, o aroma de suas flores, trago a margarida nos cabelos. Há um rastro vermelho de sol no céu, um silêncio de se ouvir só as cigarras... As coisas de novo como devem ser... 
Enxugo fios de água no meu rosto, respiro e retomo o caminho da minha vida com a renovada certeza de que você está sempre perto de mim.
(16.06.2014)

Um comentário:

  1. Não tenho essa memória, mas me lembro sim do aroma verde, das flores bem arranjadas, do olhar. Vocês tinham mesmo muita cumplicidade! Muito tocante este texto. adorei!

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