terça-feira, 20 de maio de 2014

RECEITA DE DOMINGO



Separe um acordar tarde e um sorriso faceiro para o dia; as janelas, abra-as aos poucos e olhe, através delas, a vida andando vagarosa na rua ou nos ruídos vindos da casa do vizinho. É necessário um aroma de café recendendo pelo ar, operando, assim, mil promessas que não serão cumpridas, porque domingo é um prato que é feito de momentos fugidios, temperado só com muito agora. Depois desse preparo, vem a parte mais difícil, que é não deixar o domingo ficar fora do ponto. Para isso é preciso uma boa dose de chamego, muita delicadeza com palavras e gestos e tudo isso regado com uma colher de riso. Se a tiver na despensa, ponha um fio de uma sedução apimentada, na dose certa, para que a iguaria não fique insossa e nem picante demais.


Enquanto o domingo está no forno, é bom guardar silêncios. Curtir uma rede em dupla é uma boa pedida, ler um livro, uma manta no sofá, um bom filme. Há os que preferem ouvir as histórias dos antigos ou o riso das crianças. É ainda domingo...

O domingo pode ser servido quente ou frio. Seja como for, deguste-o como o primeiro dia da vida, o dia da graça, do novo começo. E como sobremesa, mande ver, lambuze-se de amor! Afinal, ao domingo se seguirá a segunda-feira da inevitável dieta.

E se, ainda assim, o domingo desandar, não é de se desanimar: guarde os ingredientes e tente de novo de uma outra vez; só de o experimentar já faz um bem danado para alguma esperança. Tentar de novo é, ao fim, o sabor mais apurado que nos oferece o domingo.
Bom apetite!

Imagem: Tela do pintor Rui de Paula.

quinta-feira, 15 de maio de 2014

Os Fios do Tempo





O tempo que foi tanto de espera
foi deixando de ser espera e virou só tempo.
E, no meio do tempo, o que era tanto
e se fez de tanta espera
tornou-se música distante
para uma dança teimosa,
sem harmonia,
um artista mambembe 
no meio da praça vazia.
E o tempo em silêncio,
que é seu modo de falar,
conta que nada mais há
que fale de nós, naquele lugar:
do amor vivido, da fúria,
do laço rompido...
Dois fios de vida
largados ao vento,
que nunca se encontram,
que têm entre si poeira de tempo
e tempo
que, quanto mais tempo,
é menos tempo.

segunda-feira, 12 de maio de 2014

O Lugar das Respostas



Não acredito que o homem tenha chegado à Lua. Mas

acredito em disco voador e pronto, sem nunca ter visto. Não 

acredito em nada que precise ser provado para ser aceito. 

Creio nas coisas que já trazem em si sua própria lógica e que, 

justamente por isso, nos enchem de improváveis dúvidas, 

infinitas.

É impossível não se crer no infinito.



Recado de Colombina


Fala para ele que eu não sou dessas que se recusam ao que querem ou que dizem “não” com olhos de “sim”, pois não sou de mensagens sub-reptícias: eu sou da folia, gosto escancarado e ao sabor do vento e de melodias.

Fala para ele que não é falsa impressão esse desejo que denuncio em meus trejeitos, que adoro beijo indecente em fila de ônibus e que sou perdulária nas carícias.

Diga que não resisto a um pedido de desculpas acompanhado de mãos atrevidas, que invadem por sob minha saia e tocam com jeito de dono meu corpo que arde, alquimia desesperada de matéria fluida e desejo.

Pode falar que eu me apaixono fácil, mas que me apaixono fundo e de um modo até ridículo, que elejo música tema, deixo bilhetes em gavetas e adoto fetiches baratos.  

Conta que aceito convites repentinos de passar o tempo que nem tenho a seu lado, encaro amasso no cinema da sessão do meio dia, abandono o trabalho e fico a noite inteira, na parte mais imunda da cidade, sentada num bar, escutando com fogo nos olhos as histórias infinitas de sua vida passada e futura.  (Ah, e eu acredito em tudo, até mesmo que o homem foi à Lua!)

Fala para ele dessa minha inteira entrega e como estou louca por ele! Que fique sabendo que, quando ouço sua voz mansa do outro lado da linha, saio apressada para a rua, isso mesmo, correndo de salto fino ou de pijama, descabelada e alucinada e só respiro se o avisto à minha espera, descuidado, como se não se lhe importasse a incerteza de minha chegada (sempre certa), me enchendo de aflição e vontade. 

Mas uma coisa, preste atenção, tem de avisar certo a ele: diz que é fundamental deixar ser espontâneo e leve, brisa refrescante da manhã. Diga que, só porque me tem toda, não pode vir tumultuar a graça indolente do amor, retirando-lhe a alegria com calculadas ausências, meias palavras e jogos de dúvidas insanas que tornam tudo inutilmente difícil. Para isso, admito, eu sou muito preguiçosa e deixo o baile... vou pra outra brincadeira. 

quarta-feira, 7 de maio de 2014


ópios édens analgésicos
não me toquem nessa dor
ela é tudo que me sobra
sofrer, vai ser minha última obra

(Paulo Leminski)

domingo, 4 de maio de 2014

CAFÉ DE DOMINGO





Sempre quis do amor
Essas coisas bem simples
Como a alegria indolente 
de café da manhã de domingo
nos anúncios de margarina.
Nunca teve esse regalo em sua vida tão real.
Foi  com seus amores passantes
que chegou o mais próximo disso,
desses cafés das manhãs de domingo.

Mas nunca em dias de domingo
e nem em horas da manhã...


(Imagem: Matisse)

sábado, 3 de maio de 2014

PAIXÃO

“- Vem comer, moleque, e larga desse negócio aí”, gritava a mãe da cozinha  já com ar de cisma com o menino sentado na porta, à tarde toda, tentando tirar som daquele “pau de música”.

A  flauta a que lhe passaram chamar “pau de música” veio  do meio das catanças do lixão e, quando a viu, branquinha ali reluzindo, não pôde mais deixá-la e começou a soprar e sentir-se deliciado com o som doce e rouco que saía daquele objeto.

No começo ( e até, no meio também), era um som desordenado, umas notas sapecas saindo como quisessem. “ - Tem de por ordem nessa mixórdia, menino, senão todo mundo vai é ficar louco”, dizia seu Zé do Arrebite, o mecânico sanfoneiro que tocava nas festas de forró lá da vila.

E o menino insistia em por ordem na confusão musical para desgosto da mãe. Preocupava-se a mulher de não ver o filho com os demais, mais ausente do que já era de seu feitio. No coração materno, pulsava um desconforto natural de não perceber, no garoto, as tendências comuns de todo menino: “Moleque sem paixão de brincar não dá boa coisa, não.”

Os sinais de homem que rodeavam os moços, não se evidenciavam da forma naturalmente “animal” nele. Enquanto os demais sonhavam com Brigitte Bardot em pelo, na tela enorme do cinema, era no gemido da flauta que o rapazinho devaneava seus mais ardentes sentidos eróticos. A mãe, de soslaio, só pensava “esse menino precisa de namorada, precisa de uma paixão”.

A teimosia de aprender por ordem nas notas daquela flauta fez nascer um homem com uma mania de reinventar harmonias de amor, que todo mundo, até sem saber, gostava de ouvir. Muitos usaram aquelas canções para embalar tantas histórias apaixonadas.

A flauta mágica do homem sem paixão o levou a muitos lugares. Por sua música cantada e  soprada  de um jeito simples, o mundo, por sabe lá que razão, amou aquele trovador e este amou o mundo inteiro com suas notas cândidas.

Com o ouvido grudado no rádio, a velha mãe sentia o coração vir à boca quando ouvia o locutor apresentar o nome de seu filho. 

De olhos brilhantes de lágrimas pensava consigo: “pro meu filho, na vida, só faltou uma paixão.”. E fechava os olhos, com as mãos no peito, para beber da música de seu menino...

quinta-feira, 1 de maio de 2014

A Lua na Cama



E então a lua visita
nossos movediços lençóis
e se derrama 
prateando as águas
do mar em nossa cama.