quarta-feira, 24 de abril de 2024

Tive dó

 



Eu tive dó 

Da mulher condenada pela lente

Ao banco dos réus 

Por  um juízo de "lives"

Que nada tem a ver com vidas 


Morto, a propósito, o velho 

Outra vez, no velho Banco 

Teve de novo negado 

Como na vida

Seu último pedido de socorro


Tive dó do velho morto 

Exposto ao escárnio 

Dos que, pior que ele, mortos já são 

E que não têm de bancos senão 

Dívida e expropriação 

Mas se preocupam se o Banco

perde aos mortos um seu milhão


E da mulher, mais sábia que eles

Que já não distingue morte e vida

Tive dó


 Tenho dó 

De todos nós à deriva

De todos em busca de algo

 E de alguns tostões de atenção 

Mortos à própria sorte

Vagando feito vivos 


E tão vivos , por outro lado

O Banco e homens de toga

Ninguém duvida

Juízes a condenarem à morte um país 


Mas sem lentes para os julgar 

Nem olhos para ver ou entender

O mútuo que fazem com a vida de todos

Com suas palavras em azeite


O velho

Embalsamado só na vergonha, 

Tanto humilhado na vida

Implora ao banco um último respiro

Quem sabe a salvar a filha

Aquela que sem saber

Não mais podia distinguir a morte e a vida

E muito antes dele jazia.


Tive dó 


segunda-feira, 8 de abril de 2024

SENTA QUE LÁ VEM FILME: "Anatomia de Uma Queda"







O filme francês Anatomia de Uma Queda, da diretora Justine Triet, e com atuações pungentes, brilhantes, sobretudo de Sandra Hüller, é arrebatador!


Retratando a história da suspeita sobre a morte do marido de uma escritora e o julgamento desta como "possível autora de um possível crime', começo por dizer que não é mais um filme sobre tribunais e assassinatos. Tais elementos servem apenas como palco para a apresentação de questões muito mais intrincadas que transformam a fria dinâmica do ambiente judiciário ali retratado numa verdadeira ágora ou num complexo divã. 


Já de início o que se vê é que a primeira queda é a da verdade. Tudo é dúvida.


Na busca de se qualificar um fato extremamente duvidoso como um crime certo, o que se vê, no decorrer da trama, é a distorção e construção de versões na defesa ferrenha dos diferentes entendimentos de uma teórica verdade. A verdade, que deve ser apenas colhida como flor que desabrocha natural, passa, assim, a ser criada e colocada como um prêmio a um vencedor, sendo submetida, nos tensos e excitantes momentos das cenas no tribunal, a uma carga de velhos preconceitos sobre temas sensíveis (fidelidade/traição, relacionamento aberto, bissexualidade, patriarcado, inocência e culpa) que permeiam as conhecidas formas de julgamentos moralizantes de nossa sociedade.


Esse emblemático ambiente da Justiça tão sujeito a falha, tão indiferente à matéria gente, tão cego da verdade, tão  desconcertado diante da dúvida, é representado, principalmente, nas figuras das personagens do jovem promotor com sua lógica, por vezes, distorcida, e da burocrática juíza, ambos ávidos para verem coroadas a sua predisposição particular à compreensão dos fatos. A uma criança cega - e essa simbologia é genial! - coube o papel de relembrar aos doutos guardiães do bem e do mal social qual é o verdadeiro sentido de Justiça.


No entanto, é no transcorrer do dia a dia, na intimidade recôndita das personagens centrais, que a anatomia se dá de forma paulatina e profunda, revelando as mazelas e demônios dos indivíduos nas suas relações com os outros e consigo mesmos, diante da incapacidade de lidar com questões demasiado humanas e que podem levar qualquer um a quedas, como a intransponível sensação de fracasso pessoal, experimentada pelo personagem do marido Samuel, ou a impossibilidade de  reconexao do casal assolado por mágoas, disputas, desconfiança, delimitando os vários territórios e "línguas" dentro de uma família.


Nessa hora, nós, os espectadores, somos envolvidos por essas circunstâncias humanas,  nossas velhas conhecidas, e, sem perceber, deixamos de ter um lado na história e vemos somente a dor da tragédia que tocou nas vidas daquelas pessoas, que não têm sequer a oportunidade e o tempo para se dedicarem ao seu luto. 


A essa altura do filme, está consumada a anatomia evocada no título  e que vai muito além da literalidade que inicialmente se supõe. Nada é mais desequilibrante do que dissecar fragilidades, fraquezas e ambiguidades num espelho que se quebra diante de todos ou diante daqueles para quem gostaríamos de ter o nosso melhor reflexo.


As razões das quedas, que qualquer ser vivente sobre a terra pode conhecer e reconhecer, ao fim as sentimos escorrendo pela nossa face e caindo em gotas num abismo de encanto e susto regidos por uma trilha sonora belíssima que completa a grandeza da obra prima apresentada pela diretora.  E o último abraço do filme não nos deixa sentir menos que isso.


Maria Taciano