Sempre se encontram nessa agitação de preparo de alguma coisa festiva, importante, necessária para aquecer o amor a alguém. A filha, olhos e ouvidos atentos, grudados na sabença da mãe. E é boa a emoção, instala-se rara euforia de paz, de coisas simples na alma da filha, porque tudo tem a tutela materna e tudo está em seu lugar.
Mas, em sonho, nada é muito tempo no lugar e por uma onda de gente, ambas sempre se separam levando cada qual as flores de jasmim para enfeitar a celebração que nunca se completa. E a filha vê a mãe indo, distanciando, carregada em festa.
Acorda sem flores nas mãos, mas com a música e os ruídos no ouvido, a imagem da mãe vagarosamente se dissipando na realidade desperta. Entre chorar e sorrir, ficam os dois, porque há lágrimas molhando essa alegre saudade que perdura.
Sabe que traz algo da mãe em si, embora o espelho pouco revele dessa semelhança. O pai lhe dizia que era a filha mais parecida em jeito e era um elogio, a irmã, quando lhe xinga diz "parece a mamãe", e ela nunca sabe se, de fato, é um xingamento.
Não traz o mesmo verde de seus olhos, mas tem o mesmo verde de seus gestos, naquele sempre cuidado do cuidar de alguém, tendo na delicadeza a expressão mais genuína da alteridade, da dor que se subtrai na divisão. Tal como naquele afago inesquecível, certa vez, de a mãe aceitar o pão oferecido para somar ao macarrão, mentindo que adorava, somente para aliviar o desconcerto mudo da anfitriã surpreendida com comida pouca para os comensais. Vê-la comer aquela fatia de pão com a voracidade de um quitute preferido fez a filha entender que uma necessária mentira é o outro lado do espelho da verdade, porque nada era mais saboroso àquela mesa de que o suspiro aliviado, a cumplicidade da mulher anfitriã não mais sozinha em seu apuro. Da escassez, e era sempre assim, a mãe fez o banquete.
Tudo na mãe exalava essa beleza primeira, uma justeza das ações, embora toda envolvida de dúvida ou de certezas trêmulas de quem precisa dar ao outro aquilo que nem muito tem. Tudo na filha, que se apresentava firme, tinha a substância dessa fragilidade originária.
Por seus olhos atentos na outra, foi que a filha teceu-se como mulher com os fios que se iam destecendo dessa mãe, paulatinamente, se desfazendo para tornar-se filha outra vez.
E como os despojos de um naufrágio na praia, que se juntam para identificar a origem, foi nos fragmentos recolhidos da mãe que se fez o liame, a reconstrução do cordão umbilical, o fio além da compreensão de moiras. E um nascimento lento e vagaroso e eterno se faz e refaz, na roda a rodar sem fim nem começo.
A inconsistência de uma foi bordando a estranha consistência da outra. Na mãe, o laço de família se forjou pela cumplicidade na dor; na filha, foi dor que desatou laços.
Na mãe, a volta à cidade natal das Gerais de céu azul e pão doce era o sonho suspenso, sempre um passo mais distante. Na filha, o amor aos territórios estranhos era o seu sítio de estar...
Ambas, contraditórias e complementares, sendo, cada uma, a fibra que se desfazia e a roca que dela se alimentava fiando, assim, a tal complementaridade garantidora da continuidade dos sonhos, da vida, da busca e da espera.
A mãe nunca tomou o navio de retorno ao doce e azul de seu lugar; não deixou, mesmo assim, que se lhe fossem queimados os navios, destinados àquela que empenharia a viagem.
E é nesses navios que a herdeira prossegue. Acostumada aos giros da roca circulante, a roda do leme lhe parece o mesmo lugar de alinhar os adiados caminhos maternos e os dela próprios.
E flutua nesses navios, tão incerta, tão passageira como aquela. Flutua essa rota de retorno sem destino, cujo único porto de descanso se faz dentro dos sonhos em que encontra a mãe num sempre ritual de preparo de um festejo prometido.
Duas degredadas fiandeiras a fiarem, sem tesouras, os fios que lhes orientam a trilha que as leva de volta para o começo de tudo, num lugar, esse seu, em que são uma e a mesma centelha de afeto e zelo, filha e mãe já não se sabe quem.
(Imagem: Dança de Fiandeiras do Cerrado; UFG)
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