domingo, 12 de abril de 2020

Ciranda





Ela girava
girando fazia
volta e volúpia
girava nos olhos
o corpo rodando
no tempo e distância
do próprio desejo
o beijo esperado
nos lábios  suspensos
por olhos que viam
rodava naquela ciranda
de carne e fogo
Faíscas saltadas
do caramelo quente
da cor de seus olhos
chamando ao jogo
rodando a vez da jogada
escorrida no espelho
da fumaça do chuveiro
que revelava
em sombra e luz
seus sexos envoltos
mostrados nos corpos
ausentes presentes
E tudo girando
sem troca
sem toque de pele
e almas desnudas
em palavras encarnadas
gritando amor e grunhido
tão longe, atrevido
ardendo em vontade
girando a cabeça
nos seios redondos
aos dentes e língua
tão presos na boca
aberta de espanto e tontura,
tortura...
E ambos giravam
giravam a roda
da sorte, fortuna
de nova promessa
ciranda da carne
ciranda da alma
ciranda da espera
ciranda do amor





domingo, 5 de abril de 2020

ORAÇÃO A BELCHIOR POR UMA VELHA BALADA NOVA




Quando tudo isso acabar, vou fazer como aquela mulher do episódio de Black Mirror, que abandonou as redes sociais totalmente.

Nunca mais quero que uma telinha seja minha única janela, porta, boca, abraço, olhos, pulsão.

Vou ser como o Kaspa Hauser libertado, Thoreau na integração essencial com a vida; saber descrever o sabor de sentido no exato momento da mordida na pera como no filme dos anjos. Reverenciar os sulcos na pele, a vitória sobre a exiguidade do tempo.

Mas, se tem uma coisa que abolirei logo de início é de não dizer o que é importante face a face, num bem claro sim ou num bem claro não. Nunca mais uma conversa interrompida, inacabada na covardia de dois sinaizinhos azuis, a indelicadeza da fala sem ouvidos.

E que votos de Feliz aniversário deixem de  ser esses vazios profundos, perdidos numa centena de milhares de mensagens de meio milhão de amigos intocados com seus dedinhos imaginários em riste. E que nunca mais os olhos sejam sugados por luz metálica roubando presenças. As revoluções, por vezes tão necessárias, parem  de ser sinônimo de indignação feita e sentida só no computador. E que a mentira não mais seja tanto faz verdade. E nenhuma  nudez caiba apenas na palma da mão.

Finalmente, e acho que é a maior graça a alcançar, é que o medo e o "self" deixem de ser senhores de tudo.

Que eu sobreviva a isso, se não na carne, poesia, poeta.

Amém.



sábado, 4 de abril de 2020

O rímel de Laerte






De tudo quanto poderia vir a ter, fascinava-o aquela liturgia, dita feminina, de uma lágrima preta de um rímel escorrido. E era, enfim, em seu mesmo rosto que essa lágrima escorria. Um homem se tornara mulher.
De ali, tudo seria dor, inconformidade e inconformação.
E mesmo assim, com um risco negro de lágrima na face, ela sorria.



sexta-feira, 3 de abril de 2020

Miragem




Meu corpo que trazia as marcas
de seus dentes e dedos
traz hoje as marcas de outro
o tempo que, em seu fluido abraço
dissolve nosso segredo

Tempo que leva distância  
às nossas memórias
levadas no ombro
do nosso cansaço
e que faz  das sobras
sombra da nossa história