quarta-feira, 29 de maio de 2019

Fogo fátuo


Que o amor machuca logo percebeu. Ainda menina, ao abraçar o tronco de uma árvore, teve seus bracinhos queimados por dezenas de taturanas ardentes que ali dormitavam, antes de sua metamorfose alada em futuras mariposas.
As lágrimas que escorreram em seu rosto eram de dor e mágoa
A mãe ralhou que agora aprenderia a não se dar a afagos incomedidos.
Logo cedo aprendeu, a duras penas, que um abraço de amor pode queimar.
Aprendeu e aprendeu... Aprendeu a deixar-se queimar.




Foto : Sérgio Larraín

Não voltes...





Não voltar
Era um medo
Uma constatação
Um desejo

A batida do portão
veio ressoar, a ferro,
o atraso desse medo,
 e, na vaga presença,
um desejo insatisfeito

Esperou dentro da escuridão
da casa e de si...
Quis e não quis
ouvir outra vez
o retinir desse portão...





sábado, 4 de maio de 2019

Deus na multidão

Pelas calçadas degradadas,
a vida desgraçada.
E os saltos vão, desviam,
titubeiam diante de olhos
que não desviam

As pernas sobre eles
não têm mais
o vigor de outrora,
que avançavam
a passos largos
àquela esquina do amor

A idílica estátua é velha
em frente à velha Faculdade
sem juventude alguma
Os jovens viraram
velhos e ausentes

E os olhos pousam
em edifícios feios
que escondiam, antes,
aventuras e irreverências
de estudantes

Não há hoje o antigo
Tudo se tornou novo
e tão velho
Descorado,
sem sentido

Sem sentido o viaduto
por sob onde os carros
enfileiram as mesmas filas
sem alegrias,
apenas filas

Não existem também
aquelas ciganas
com suas saias
a colorirem os caminhos
e prometer-lhe destinos

O destino também se foi.
Foi-se a cidade
tão querida, tão pulsante,
tão amorosa
cheia de tantos amores

Os amores se foram
com esse tempo
que leva
cimento
e sentimento

Porém, ainda resta
uma réstia
da mesma solitária
caminhada
assistindo à vida
presente que passa.

Para. Para
automaticamente
diante de um velho poeta,
um cidadão que lhe conta
que Deus está aqui e agora,

que nunca O vemos
e Ele se entristece,
andando invisível
nas ruas tristes
e sonoras.

Mas  nesse barulho há,
empoeiradas, música e poesia:
Etta James, Oscar Wilde
transgressoramente
se apresentam

na esquecida prateleira,
da banca de jornal esquecida
em que brilha o sol redondo
sobre os  compact discs
em meio a capas antigas.

Há uma alegria
nessa transgressão.
Dez reais e ela sorri,
poesia e música nas mãos,
um verso de si em si

O velho poeta
tinha razão:
Deus ficou mais feliz
e caminha sorridente
na multidão.

quinta-feira, 2 de maio de 2019

Se dá um riso, dá abrigo*





Hoje fui chamada de puta por um menino de rua. Ele vinha dentre vários meninos e se sentiu ofendido ao me ver mexendo na bolsa para guardar o celular. Disse que não queria me roubar, "sua puta".
Mal sabia ele o que defendo. Mas eu tive medo, sim, que eles pegassem o celular de minha mão. E essa realidade de todas as agressões sentidas por ambos me deixou muito triste, neste país que passou a ser só tristeza.
Dez passos à frente, um estrangeiro, uruguaio, maltrapilho, vendendo arduamente suas miçangas me presenteou com um anel de lata e o direito a um pedido e me disse gentilmente que eu era uma linda brasileira, a mais bonita brasileira. Só porque fui gentil em parar para ouvi-lo.
São tão simbólicos esses acontecimentos!
As crianças e estrangeiros, os pobres em geral, tão abandonados que um gesto pode ser um afago ou uma facada. Tudo é abandono, todos nós em abandono.
Eu queria ter dito palavras gentis ao menino que me chamou de puta...

*Referência à música Cruzada, cantada por Beto Guedes; nela, era o beijo dar abrigo...Que tudo seja motivo de abrigo