segunda-feira, 23 de janeiro de 2017

Debaixo dos caracóis...







É um memorizador de cachos - disse a moça da perfumaria.
A evasiva promessa do rótulo do xampu somada à pouca técnica da explicação da garota foi suficiente para tirá-la de lá. Já não ouvia; buscava saber o que poderiam fazer cachos cheios de memória em cabeça de lembranças já tão esmaecidas. O que, de suas histórias, como num código genético, guardariam as curvas de seus caracóis?
Na tentativa de apalpar tais passados, foi para um canto da loja, fechou os olhos e, secretamente, tocou numa mecha espiralada de um cabelo cheio de vida, de sua e de tantas vidas que arderam acumpliciadas com ele, ao vento, entre dedos, esquecido, louco, pousado na fronha, sob chuva, ao sol, na canção. Cabelos rebeldes ou encarcerados, espreitando mil pontos de luzes opalinas pelos furos do chapéu, parafuseando na ciranda das flores da guirlanda nupcial, cachos dormindo nos dedinhos dos filhos agarrados a seu peito, sugando o amor, cachos derrubados no colo dos homens que amou..
Noutra tentativa, seus dedos mergulharam mais generosos no cabelo e já não lhe importava o que pensavam os que a viam, uma mulher desfazendo-se em delírios de lembranças capilares, no afã de reviver de maneira tátil as histórias em madeixas.
Como imagem na água, os cachos caprichosos se desfizeram ao toque de suas mãos, porque cachos e sonhos são assim!
Se levava tais histórias nos cachos ou na alma, era àquela altura indiferente.  De ali, ela o soube  - e era o que bastava - é que havia memórias. E, no espelho, viu uma cabeleira esplêndida, livre, alvoroçada, refulgente, contornando um rosto em cuja boca se abria um riso largo e incompreendido. Ela estava em paz com seu cabelo e com sua história. Não comprou o xampu.


Imagem: Gustav Klimt (Judith- Salomé)

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