domingo, 14 de setembro de 2014

Vento do Norte



Ela agarrou seu braço, no limiar da porta, e em tom de rouca súplica, lhe perguntou:

- Mas não disse que, comigo, você finalmente estava em paz?

Ele reuniu forças e olhou em seus olhos com uma consternação, que revelava tanto gratidão quanto desconcerto, e lhe respondeu:

- Sim, mas não feliz. 

E retomou a incerta estrada, na direção do dia que amanhecia.

segunda-feira, 8 de setembro de 2014

Um Homem que não se chamava Baudelaire” (*)


Para você, com carinho.


"Às vezes, me sinto muito só. Sem ontem e sem amanhã. Não adianta que haja pessoas em volta de mim. Mesmo as mais queridas. Só se está só ou acompanhado, dentro de si mesmo. Estou muito só hoje. Duas ou três lembranças que me fizeram companhia, desde segunda-feira, eu já gastei. Não creio que, amanhã, aconteça  alguma coisa de melhor."
(O diário de Antônio Maria)

                                        
                                         

Por que Antônio Maria, se você e ele aparentavam temperamentos tão distantes? Ele, um homem popular, falastrão, cheio de amigos. Você, um cara reservado, de palavras poucas e precisas. Quase nada popular.

Ardia em ambos, contudo, a identidade no refinamento do humor, na extrema sagacidade e na profunda solidão, a solidão, esse rio manso, de águas escuras e fundas em que poucos ousam mergulhar.

Você sempre citava Antônio Maria, mencionando suas crônicas esportivas, sua inteligência, a beleza de sua música, seu bolero. Você dizia de Antônio Maria para dizer de si mesmo. Nele você se revelava e, em você, ele se ocultava.

Homens lapidados na noite, na boemia e dotados de extrema poesia por vezes incompreendida, as duas figuras tiveram o melhor de suas vidas cantadas por terceiros, denunciantes encantados. Muitos destes forjaram suas próprias histórias a partir dessa magia.

Completamente amplos no sacrifício pelo amor -  um deixou-se devorar pela vida, e o outro, pela morte - partiram em plena elegia à sua solidão. Nem a derradeira despedida serviu de motivo bastante para romper esse pacto.

Porém, a sua arte da vida não é como a de Maria, que se imortalizou no merecido reconhecimento da matéria de sua estética. Não, a sua arte reverbera como um eco e como tal vai-se alastrando, perdendo sua força e contorno até emudecer...

Mas há algo nela que sobrevive por si, e em algum ponto, sem o compreender, ela é vivida, doída, captada num brilho fulgurante de olhos de menino como foram os seus até o fim. E, inusitadamente, um silêncio é rompido com um afinado e muito familiar assobio que sopra uma pérola musical do melhor repertório de amor dos anos 50, extraída “diretamente da Rádio Tupi”:

“Ninguém me ama,
Ninguém me quer,
Ninguém me chama
De Baudelaire.”

E a saudade vem como ondas de rádio.

(*Referência aos versos do samba-canção “Ninguém Me Ama”, de Antonio Maria e Fernando Lobo)

quinta-feira, 4 de setembro de 2014

De amores e espumas



"- Para você, como se manifesta o amor?

Foi esta a pergunta que ela lançou a ele, assim, de repente, de frente para uma caneca de chopp. E ele, meio sem jeito, esforçou-se para responder, buscando inúmeras palavras que carregavam muito mais sentimento do que significado. A explicação, coitado, foi uma catástrofe, porém, havia muita verdade naquele seu não dizer.

Ele a amava muito mais do que ela imaginou até ali. Ele que nem era bom com palavras e que odiava essas demonstrações de “sentimentalismos” estava diante dela, tentando exprimir-se, esforçando-se para alcançar aquela mulher de temperamento tão singular.

Ela não ouviu metade das palavras ditas e, mesmo assim, aquele gesto tão verdadeiro e esforçado fez com que brotasse nela um remorso infinito: trazia consigo um indisfarçável regozijo de vê-lo daquela forma, finalmente, sangrando.


E quanto mais ele dizia e vasculhava seu limitado vocabulário, mais absorta estava ela em busca das palavras bem colocadas que não revelassem a ideia exata de amor que bem conhecia dentro de si, que talvez jamais tenha dedicado a ele e cuja definição, certamente, ele também lhe cobraria em contrapartida à sua inicial pergunta. Achou, enfim, a palavra certa e definitiva – era boa nisso - e então, por alguma espécie de amor, mentiu." 

(trecho das crônicas "Luas de Sabina"; Maria Angélica Taciano)