sexta-feira, 25 de julho de 2014

História Fora de Linha

Nossa história daria muitas linhas, mas preferiu seguir pelos vãos. Sem beijos apaixonados e o êxtase dos encontros abrasadores, nossa história se fez de mensagens subliminares, na fala de músicas, nos lampejos de um olhar que se fixava quando o outro já partia.
Nossa história aconteceu num movimento de gangorra, no intervalo tumultuado de dois trens que se cruzam.  Cores veladas de um retrato em preto e branco.
Nunca foi coisa de inventos como as grandes e loucas paixões. Andamos todo o tempo em busca de uma simples descoberta para chegar a um ponto de encontro, no meio da confusão polissêmica de nossos sentidos.
Impulsionados pelo potente motor do querer, hesitamos desorientados pelas orientações da dúvida. E mantivemos, um pro outro, tumular segredo de nós mesmos...
Tardias epifanias revelarão, do subtexto de nossa história, o que dela foi bom ou ruim? Quem sabe?
Nossa história foi, assim, uma literatura de entrelinhas.

terça-feira, 1 de julho de 2014

CILENE (in "Luas de Sabina")

"(...) Cilene dirigiu-se ao trabalho com sua rotineira caminhada pela cidade amanhecendo. Gostava da estranha sensação, um tanto inquietante, de ver  os contratastes daquela paisagem, a harmonia imponderável de feiuras e belezas, de grande e pequeno, formando um quadro exato, plenamente encaixado e, ao mesmo tempo, indecifrável. Uma feição única, quase o fruto de uma inspiração de artista em seus momentos de iluminação divina: efêmera e eterna. Uma imagem de uma Guernica muito própria, somada aos restos dos personagens da noite que já se iam, àquela hora, tomando a sua posição marginal, abrindo caminho para o cenário do dia e das legiões poderosas que marcham na vida diurna. A tragédia desumana, ardendo sob os bombardeios da realidade acelerada da cidade na busca de sonhos individuais ou, para quem não os mais ousa ter, a busca de um sono eterno com olhos abertos.

Ela, Cilene, sabe que é uma das figuras retratadas no psicodélico cenário. E, no entanto, em seu coração, mesmo representando uma adaptada caricatura das expressões aterrorizadas da tela de Picasso, sente-se inteira e, estranhamente, ela mesma. Cilene era parte do cimento e desarranjos e exclusões e belezas do centro da cidade de São Paulo. Ali era seu lugar.

Como havia tempo ainda para bater seu ponto na empresa, resolveu parar para tomar o café da manhã, num bar que dava de frente para a Bolsa de Valores. Ali, mesmo sozinha, não se sentia solitária como o fora em toda a sua vida até aquele ponto. Tudo parecia em mudança e tinha certeza de que gostaria delas, apesar de bastante assustada com isso.

No bar, a garçonete dirige-se à Cilene sorridente, mostrando familiaridade com aquela pessoa que era presença habitual nas manhãs :

- Café com espuma do leite, não é, senhora?

Cilene sorri e acena que sim e aguarda quieta, com o pensamento, olhos e alma distantes.

- Sabe que a senhora tem um admirador, aqui? Ele diz que se parece com artista de filme americano antigo. Sempre repara a senhora...

Cilene desperta assustada e olha ao redor a fim de descobrir de quem se trata.

- Ele já foi embora.- diz a garçonete –, mas vem aqui todos os dias tomar café também.


Mais tarde Cilene se lembraria dessa conversa e perceberia que tudo aconteceu tão alucinadamente que nunca veio a saber quem era esse tal admirador. Ficaria na saudade, na lembrança de bons tempos...  " 

(trecho do romance "As Luas de Sabina"; Maria Angélica Taciano)