"(...) Cilene dirigiu-se ao trabalho com sua
rotineira caminhada pela cidade amanhecendo. Gostava da estranha sensação, um tanto inquietante, de ver os contratastes daquela paisagem, a harmonia
imponderável de feiuras e belezas, de grande e pequeno, formando um quadro
exato, plenamente encaixado e, ao mesmo tempo, indecifrável. Uma feição única,
quase o fruto de uma inspiração de artista em seus momentos de iluminação divina:
efêmera e eterna. Uma imagem de uma Guernica
muito própria, somada aos restos dos personagens da noite que já se iam, àquela
hora, tomando a sua posição marginal, abrindo caminho para o cenário do dia e das
legiões poderosas que marcham na vida diurna. A tragédia desumana, ardendo sob os bombardeios da
realidade acelerada da cidade na busca de sonhos individuais ou, para quem não
os mais ousa ter, a busca de um sono eterno com olhos abertos.
Ela, Cilene, sabe que é uma das figuras retratadas
no psicodélico cenário. E, no entanto, em seu coração, mesmo representando uma adaptada
caricatura das expressões aterrorizadas da tela de Picasso, sente-se inteira e,
estranhamente, ela mesma. Cilene era parte do cimento e desarranjos e exclusões
e belezas do centro da cidade de São Paulo. Ali era seu lugar.
Como havia tempo ainda para bater seu ponto na
empresa, resolveu parar para tomar o café da manhã, num bar que dava de frente
para a Bolsa de Valores. Ali, mesmo sozinha, não se sentia solitária como o
fora em toda a sua vida até aquele ponto. Tudo parecia em mudança e tinha certeza de que gostaria delas, apesar de bastante assustada com isso.
No bar, a garçonete dirige-se à Cilene sorridente,
mostrando familiaridade com aquela pessoa que era presença habitual nas manhãs
:
- Café com espuma do leite, não é, senhora?
Cilene sorri e acena que sim e aguarda quieta, com o
pensamento, olhos e alma distantes.
- Sabe que a senhora tem um admirador, aqui? Ele diz
que se parece com artista de filme americano antigo. Sempre repara a senhora...
Cilene desperta assustada e olha ao redor a fim de
descobrir de quem se trata.
- Ele já foi embora.- diz a garçonete –, mas vem
aqui todos os dias tomar café também.
Mais tarde Cilene se lembraria dessa conversa e
perceberia que tudo aconteceu tão alucinadamente que nunca veio a saber quem
era esse tal admirador. Ficaria na saudade, na lembrança de bons tempos... "
(trecho do romance "As Luas de Sabina"; Maria Angélica Taciano)