quarta-feira, 30 de abril de 2014

EXPATRIADOS

"Quando o vejo meio inconformado com sua falta de chão, sangrando por não se sentir pertencido a nada ou a ninguém, eu tento convencê-lo - porque assim acredito - que não tendo um lugar você tem todos e tantos quantos quiser. Você me dá, então, aquele risinho de canto, querendo dizer que eu não sei o que digo. E eu que sei tanto, porque ninguém, além de mim, entende o que não é querer ter o lugar que lhe dizem “seu”. Esse seu nada é, de fato, o infinito que eu queria ter pra mim.
E você me diz que eu vivo num exílio muito próprio e que, exilada assim, vez por outra, parto em busca de um mundo proibido à procura da ventura que, num sítio permitido, eu jamais alcancei. Dessa forma, ando no limite do tudo ou nada, expondo-me, sem qualquer rede de proteção, ...
E dá de a gente só se encontrar nesse exato intervalo em que um busca o chão e o outro quer deixá-lo. Enquanto eu invento exílios para me livrar de raízes, você mostra seu cansaço de tanto voar sem ter para onde voltar. Insisto em tentar mostrar que você já é tudo o que eu adoro, que não me importo com o homem por vir por aí, mas vejo que segue convicto em seus planos e metas de se estabelecer, ignorando meu esforço de me desfazer de todos os limites só para estar a seu lado já.
Na verdade, nós amamos a imagem um do outro cada qual à busca de seu próprio reverso, querendo no outro justo aquilo que os dois querem deixar para trás. E, assim, são raros os nossos momentos de união, quando sofregamente ardemos a chama num jogo de talvez e não.

Às vezes, quando uma lucidez sombria o abate, com amargura  imagina como seria se não tivesse deixado o seu chão. Para acompanhá-lo em sua desdita, eu lhe digo que, talvez, fosse você mais feliz, escondendo para mim a dor da certeza de que eu não."

(Trecho das Crônicas "Luas de Sabina"; Maria Angélica Taciano)

"Para diso"












Tudo certo
Tudo como esperado
Tudo como sonhado
Tudo tão doce, tranquilo e fácil
Tudo sem perigo ou mistério
Tudo o que deve ser para dizer bom!
Ah, tudo devidamente sem emoção.

domingo, 27 de abril de 2014

"Maria Angélica Não Mora Mais Aqui" (*)

Ando com uma estranha saudade de mim. Não é aquela saudade de alguém que se tenha conhecido e convivido e que, agora, lhe falta. Não. É aquela saudade nostálgica daquilo que sequer se viu. Como a saudade de uma história não lida que alguém só comentou.
Nunca senti que eu tenha realmente existido. A mulher dentro de mim assistia ao desempenho de outras mulheres – sim, no plural, porque eram, às vezes, várias a cada época.
Descrevo a sensação de alguém que via através de uma lente, de uma vidraça, um escafandro.Uma mulher por fora contemplada por outra mulher de dentro.
Agora a mulher de fora se rompeu e, aos poucos, como uma infiltração que se alastra, vem à tona a mulher de dentro.
E como ser assim tão nua? Como será essa mulher, sem defesa, sob os efeitos das reações externas?
Maria Angélica vai-se mudar, vai ficar solta no mundo...
E vai haver o tempo de olhar no espelho e constatar a imensa e inexorável verdade: não, Maria Angélica não mora mais aqui.





* Referência à banda de rock da Vila Madalena SP de mesmo nome e que fez algum sucesso, nos anos 80.

domingo, 20 de abril de 2014

Só Maria*



E agora, Maria?
A festa acabou e você nem foi a ela
Na rede social você não é curtida
Sua crua verdade não é compatível 
com o programa da felicidade virtual
Seus amores se foram
Seu casamento há muito se apagou
Não há mais sexo e desejo, nem palavras de amor.
Os dias são mudos, 
as noites, escuras e desertas
Não há amigos e nem histórias para contar; 
vivê-las, então, nem pensar!
Sua suposta beleza está murchando 
e seu tempo esgotando
E você olha com olhos aturdidos
e chora sem ombro para se amparar.
Tentou ser outra mulher, mudou a cor dos cabelos
De nada adiantou: o vazio é policromático.
Se enche de perfume e delírios. Pra que?
Não tem para onde ir, nem com quem ir
Ninguém te percebe, a esperança já se finda
E os sonhos quase não os há
Contudo, há o quase, Maria
O que te faz persistir
E você continua, Maria
Sempre sozinha, Maria
Sempre, Maria
Sempre Maria

(* Uma homenagem ao poema “José”, de Carlos Drummond de Andrade)

sexta-feira, 18 de abril de 2014

Irreversível



Poderia ter sido diferente!

Poderia não ter ligado a máquina
Poderia não ter tirado a foto
Poderia não ter chamado você em meus olhos
Poderia não ter a sede da poesia
Poderia não tê-la reacendido ainda uma vez

Poderia não ter fugido de medo
Poderia não ter aberto a porta à paixão
Poderia não ter respondido à mensagem
Poderia não ter ido ao trabalho
Poderia não ter acordado com vontade da vida

Poderia não ter desenhado os traços de outra história
Poderia não ter duvidado do amor
Poderia não ter casado
Poderia não ter acreditado no amor
Poderia não ter posto minhas linhas em suas mãos

Poderia não ter ficado ao sabor dos ventos
Poderia não ter pego aquele ônibus
Poderia não ter ido à escola aquele dia
Poderia não ter sonhado desde menina...

Mas não pude.