quarta-feira, 25 de janeiro de 2023

A Você, com Amor*


Faz um tempo que não visito o meu amor.  A peste contemporânea ampliou as distâncias e reinventou formas de amar que ainda estranhamos. Faz tempo que não vivo o meu amor por você. 


Lembro, saíamos de mãos dadas vagando, misturando-nos à multidão das ruas...


Em calçadas bonitas de bairros protegidos ou nos lugares da ausência de Estado e de calçadas, ali nas quebradas, vivíamos nosso amor errante, sem previsão de programas, tempo e temporal. (Quantas vezes nos amamos sob marquises aguardando o cessar da chuva e dividindo espaço com aqueles que fazem do amor um outro negócio, que também faz parte desse nosso amor! Como não?) 


Passeávamos por culturas, uma inusitada comida, uma festa ou uma passeata de ciclistas nus levando flores ao túmulo da outra, que foi atropelada pelo ódio, na via exclusiva de ciclistas. E no lusco fusco de poente com fumaça, íamos nos levando, recebendo a noite entre tiroteio  e cachaça. 


Chegávamos em casa na madrugada e ainda  nos pendurávamos junto à janela esperando sabe-se o quê, com olhos ávidos na vida vista do alto do edifício, de sob o viaduto ou das estrelas que ainda piscavam no ar. E topávamos com essa vida que também já vinha correndo. em sentido oposto à madrugada que termina para a madrugada que começa em trens, ônibus, metrôs, lojas acendendo o dia para mais um outro dia. 


Eu sempre perdi para o sono, pondo nosso amor  em espera. Você não, você nunca dorme, cuidando em vigília para continuar  e continuar nesse seu compasso sem parada e de todos os ritmos.


Hoje vi você festejada. Percebi que já não tem o mesmo talhe de altivez, juventude e irreverência. Finalmente, está mais velha, um tanto decaída pela convivência mais brutal da dor e alegria destes tempos mais hostis que cimento.   


Mas você ainda carrega  todo o seu charme e o meu amor meio cansado. Ah, esses avessos infinitos em que nos desdobramos para dançar  nos seus braços e nos sentirmos pertencidos à sua dureza, realidade e sonho! Qual!


Parabéns para você, pelo seu aniversário e por, apesar de todo o tempo e reviravolta da vida e da morte, não deixar de prosseguir sendo você e eu e todo o mundo que você carrega como dom e como sina.


Parabéns, São Paulo, a grande Sampa de todos os afetos e dos meus afetos.


São Paulo, 25/01/2022 ❤️

terça-feira, 17 de janeiro de 2023

Vibra







Vibram o riso e dor, 

O peito no choro

Vibra o sopro que estremece

O apagar e acender das fogueiras


Vibram as velas

No altar ou no mar

As chamas da fé e da alegria 

Tudo a seu modo vibra


Vibra a música no ar e nas cordas

Nos cânticos sagrados

Nos batuques dos atabaques

No estalar dos búzios, o destino


A fera deitada em espreita

O trinar do passarinho

O mergulho da tartaruga ao mar

Instintos pulsantes vibram


O vento nas ondas vibrantes

Das folhas que tremem ao ar 

Vibra o sol escaldante no alto do dia 

Toda a natureza vibra


Vibram as tramas da rede

Que embala o sono e as vigílias 

A lua, nas marés e nas ondas 

dos lençóis da volúpia


Vibra o sexo, o amor, a dúvida

O desassossego da espera

Vibra o beijo na chegada

Vibra o beijo na despedida


Tudo vibra

O corpo, a alma e a arte

E o sonho que os guia

Tudo o que é vivo vibra

Tudo o que é vida vibra


Sossegue, então

Apenas prove

Está  tudo bem

Se vibra

segunda-feira, 16 de janeiro de 2023

SENTA QUE LÁ VEM FILME : "O DESTINO DE HAFFMANN" ("Adieus, Monsieur Haffmann"; França, 2020)

 



                               (Imagem: Foto reprodução de Guernica, de Pablo Picasso)


Quando o mundo é tomado pelas trevas do autoritarismo, como o foi no nazismo e outros sistemas autocráticos, a integridade moral e ética que identifica a humanidade do indivíduo tem de ser vivida em segredo, clandestinamente. Nesse ambiente, ela é tão vulnerável quanto preciosa, sendo, por isso, o maior alvo da brutalidade e coação.
A integridade é quando a tempestade de fora não encontra berço na tempestade de dentro.
É sobre a integridade que fala o delicado filme O Destino de Haffmann (Fred Cavayé, 2020, França), que conta a história do desdobramento da relação que se estabelece, de necessidades e abusos, entre um humilde e complexado empregado, sua esposa, o patrão joalheiro judeu e um oficial nazista, diante do terror da ocupação alemã na França de 1941.
Num ambiente eivado de incertezas, medos, perdas materiais e afetivas, num momento sem luz de civilidade, é pelo perfil moral de cada um dos personagens centrais que se fazem e desfazem laços que, em outras circunstâncias, seriam impensáveis.
A partir da identificação do limite do aceitável ético para cada um é que a trama vai descortinando, evolutivamente, a profundidade psicológica dos personagens, revelando mazelas e grandezas justificáveis e injustificáveis, diante de um contexto tão difícil de uma guerra.
Usando a excepcionalidade da guerra e da ocupação de um país subjugado, o filme e sua cuidadosa condução ( cada detalhe é um passo que avança na descoberta dos personagens em seu papel de vida) demonstram como permitimos que a violência se instale em nossa casa e espírito, à medida que vamos nos escondendo sob a justificativa do medo e do cuidado exclusivo aos nossos, ditos amados.
Em suma, a história do filme mostra do que o totalitarismo se alimenta. Como num desdobramento do pensamento de Hannah Arendt, apresenta, todo o filme centrado em cenas do dia a dia ordinário do interior de uma casa e família durante a ocupação nazista na França, como o totalitarismo é sustentado por um querer inconsciente que se torna consciente, e este querer revelado não é o querer de um povo como totalidade coletiva, mas um querer individual das pessoas e que se soma. É o horror que se torna uma oportunidade e se retroalimenta da ignomínia que gera e que por ela é gerado.
Filme muito bom, de tema muito contemporâneo e que joga luz sobre nossas grandezas e miudezas de alma, mostrando que é no valor da integridade ética que se assenta o último refúgio de resistência.
Como vela a alumiar a profunda escuridão, é essa integridade que distingue em nós as guerras de fora das guerras íntimas, como forma de evitar ou combater opressões e manter nossa dignidade e humanidade, pois, como nas palavras lúcidas de admoestação do personagem oficial nazista, "a guerra passa."