sábado, 14 de agosto de 2021

A Cinderela do Terceiro Andar

                                                                           

Disse João Evangelista que não podemos saber de ninguém sem, primeiro, andar dois dias e duas noites com as sandálias desse alguém.

Muito se pode interpretar dessa exortação, mas se formos um pouco mais aos pés da coisa, ali, na interpretação literal, a mais rasteira, podemos dizer que as sandálias das pessoas - tanto quanto suas jornadas - dizem muito, sim, de seus donos.

Digo isso porque, nos tempos de reclusão por conta da terrível peste mundial, em que os sapatos não traziam para casa apenas seus donos de pés cansados, mas uma grande incerteza de vida em seus solados, não era incomum ver às janelas uma infinidade de pares de sapatos ao sol. E, desses sapatos, os possíveis traços dos donos.

Às vezes, me pegava em um certo voyeurismo contemplando sapatos, assim à janela, para imaginar tanto a jornada quanto quem as andava...

O tênis branco da corrida do dia a dia retratava a pressa ou a rendição ao conforto que custa tanto do dinheiro quanto da ausência de qualquer estética que não a de uma resposta de massa. A sandália pink era da que ensaiava um glamour suposto numa realidade visível de caminhos marrons, sujos de barro. O chinelinho de laços para ir ao mercadinho trazia o traço de quem andava no limiar das ínfimas urgências e que, mesmo assim, tão de dentro, não deixava que se rompesse o liame que separa estranho de intimidade. E havia a botina do Homem Aranha que não se definia como se sonho da criança ou de seu progenitor. Já o sapato preto sisudo era o dos dias duros e o daquele que teimava a esperança carregada nas costas, sem pernas, escrita numa sequência numérica de um cartão de apostas. O tamanco mais desconfortável do mundo era, enfim, o que levava a mocidade para essas alturas que dispensam pés...

E meus olhos andavam calmos, subindo e descendo solas, cadarços, línguas, quando tropeçou num par de scarpins-salto agulha-purpurina-pequeninos, que se meteu entre uma série de sapatos irmãos que foram ao sol, não porque voltaram de uma lida e, sim, porque há tempos não a encontravam.

Aquele brilho quase incandescente daquele exótico par de sapatos sob o sol, e que soava como uma espécie de arrebatamento herético, do ponto de vista dos ritos de moda, me seduziu de tal forma que não pude me afastar da janela sem tentar descobrir a quem eles pertenceriam.

Contrariamente aos das outras janelas que me contavam eles mesmos a suposta história, sua e de seus navegantes, esses não, esses não indicavam os caminhos até seus pés donos. Pediam necessariamente a outra personagem, a secreta, a misteriosa, aquela que nem sempre se veste dos demais sapatinhos andróginos ao seu lado, sob o mesmo sol, e que no entanto, pelas deformações comuns em todos, supunha-se serem partes do mesmo acervo de propriedade.

Á noite, ainda, a lua encontrou aquele sapato de cristal reluzindo seu tom mais verdadeiro. Extasiante! A pequenina joia podálica brilhava um brilho de cristal sob o tom azulado da lua. Era ele mesmo um caco de lua faiscando na varanda de um terceiro andar num prédio do mundo.

O ar de gala do scarpin-salto agulha-purpurina-pequenino cedia já ao tempo. Percebia-se nele um excesso de uso que revelava que o tal bibelô era um sapato de muitas caminhadas. O scarpin-salto agulha-purpurina-pequenino não veio a esse mundo a passeio.

Pois, se o sapato não veio a passeio, veio para a luta. E qual seria ela? Festas, palcos, bordéis? Cismava comigo a deduzir o que requisitava tanto brilho assim. E não era de curiosidade que se tratava. Não só. Ter uma ideia do emprego possível daqueles sapatos passou a ser um sentido, um norte, um avançar para alguém desnorteado que enfim, escolhia uma certa direção e prosseguia no rastro deixado por outro alguém adiante de si.

Eu estava nessa encruzilhada em que a vida me estatelou, no beiral de uma janela, buscando chão a partir do chão que sapatos de outras pessoas trilhassem. E estava pronta a empreender essa jornada com os meus pés agora estáticos!

Passei a querer, a precisar ver, pelo menos de relance, quem calçou aquele par de scarpin-salto agulha-purpurina-pequenino.

Quando dei por mim, estava espreitando movimentos do apartamento, luzes que se acendessem, sons, pessoas do lugar que pudessem ir à sacada para regar as plantas, nesses mínimos rituais domésticos que permitem saber, no que não se mostra porém não se esconde, muito além do que se supõe revelar para olhos ávidos de busca.

Mas nada. Além de uma constante fresta aberta da porta da sacada e uma tênue luz acesa de um abajour na sala, à noite, nenhum vestígio de gente havia naquele apartamento, parecendo que, além daquele dia em que os sapatos foram expostos ao sol e à lua e misteriosamente recolhidos, ninguém mais esteve naquela casa; o abajur aceso devia ser apenas um esquecimento de quem se foi sem apagá-lo. Ou alguém que tenha vindo somente limpar a casa, dar destino aos objetos de ocupantes já ausentes, simplesmente inventariando o espólio de quem não mais andava suas sandálias neste mundo.

Confesso que essa hipótese, a da suposta morte, tão irreversível e tão definitivo desfecho, mesmo não conhecendo a dona dos scarpins-salto agulha-purpurina-pequeninos, me deu uma tristeza tão dolorida quanto a tristeza que sobrevém àqueles que deixaram de remeter a carta contendo a mensagem reveladora a destinatário que nunca mais virá a lê-la.

Neste certo abatimento, deixei de vagar meus olhos pelos tantos sapatos quotidianamente colocados nas janelas dos outros apartamentos. Tal devaneio perdera o brilho, em todos os aspectos. Vez por outra, minha atenção buscava era o apartamento do terceiro andar, cujas iluminação e janelas mantinham o mesmo estado de imobilidade.

Não sei se dias ou meses, o tempo não se apresenta como melhor medida quando já se perdeu o rumo da busca, o fato é que, aos poucos, a rotina do quotidiano foi tomando seu lugar e a ânsia de descobrir a possuidora da relíquia em sapatos foi sendo, paulatinamente, abandonada. Fim da linha para os scarpins-salto agulha-purpurina-pequeninos.

Foi num sábado, porém, que tudo reacendeu. Uma voz em falsete soprano, com alguns deslizes de desafino chegou-me aos ouvidos e despertou-me de meu preguiçoso vaivém na rede da sacada. Não sabia definir de onde vinha tal incerto falsete até que, junto dele, de repente, explodiu Maria Callas saindo da caixa de som de um apartamento e ecoando por todo o prédio.

Rapidamente, algumas cabeças surgiram às janelas naquela típica curiosidade e irritação dos espíritos estéreis da dor e da abrupta beleza de uma ária de ópera. Para os silêncios acordes do regulamento de condomínio, outros acordes e a exuberância da voz de Maria Callas se transformam num mero ruído, decibéis transgressores dos limites da paz e do sossego comum das tais gentes de bem.

Também eu busquei saber de onde vinha tanta irreverência e inundei-me de alegria ao descobrir que era no apartamento do terceiro andar que, além da luz do abajur, outras luzes tremiam ao som do descomunal timbre da soprano.
E então os vi: dois pequenos pés descalços que, pousados no sofá, se movimentavam ora em ponta ora em retração como minúsculos remos remando no ar em ritmo lento e constante da música, da voz da da diva Maria Callas e sua extensão de agudos acima da orquestra que a acompanhava.
Não tive dúvida que, enfim, descobria os passageiros dos scarpins-salto agulha-purpurina-pequeninos. Paradoxalmente, eram pés sem os castigos dos saltos, sobretudo os agulhas, mas com pequena saliência lateral que denunciavam as linhas meio disformes da galeria dos outros tantos sapatos ao sol naquela manhã junto da estrela principal, indicando serem todos dos mesmos pés. Uma verdadeira assinatura de uma obra.

E os olhei detidamente: eram dois pés quadradinhos, de dedos gordos e curtos, brancos, sem esmaltes. Não indicariam a um desavisado, à primeira vista, serem os viajantes de primeira classe dos luminosos scarpins. Mas eles estavam ali, nas dimensões diminutas tão condizentes com a pequenez dos sapatos fosforescentes então ausentes na cena.

Acompanhei cada acorde da ópera sob a regència dos pezinhos nus em movimento, até que os vi deslizarem do sofá e se perderem de minhas vistas. Retornaram, logo após, agora firmes no chão, acomodados dentro deles, dos scarpins-salto agulha-purpurina-pequeninos.

Foi o clímax da ária, o momento de júbilo para mim que me via diante do grand finalle de ver a diva que os calçava.

Era uma noite de lua e pensei que os scarpins-salto agulha-purpurina-pequeninos não deixariam de brilhar seu brilho máximo, lunar, em execução de tão singular número. Eles viriam à sacada, ela viria á sacada, divinal, para receber os holofotes lunares!

Não veio. O espetáculo permaneceu reservado dentro da sala do apartamento e, se eu via os tais sapatos em atuação, fazia-o por uma condescendência do acaso de uma fresta de cortina que me permitiu avistar, de andares acima, exata e exclusivamente os sapatos vestindo os pés de sua misteriosa dona. Somente os acordes e pés ofereceu-me a Cinderela cantante do terceiro andar.

E foram árias seguidas de uma perfomance ardorosa. Eles, os revelados sapatos scarpins-salto agulha-purpurina-pequeninos brilhavam nos agudos, ardiam em meia ponta, giravam sobre a agulha dos saltos nos tons médios da música, andando para um lado e para o outro na gravidade de um desfecho ...... Brilhavam.

Enfim, veio a reverência final sob os aplausos, a ufania febril da plateia imaginária ou quase. Um êxtase que se completaria, se a magnífica prima-donna se mostrasse na sacada, após o último acorde.

Persistiu-se o mistério. Após o acorde final, sobreveio um súbito silêncio entrecortado por um toc toc de saltos caminhando vagarosos para o interior da casa. As luzes se apagaram, as cortinas se fecharam. E foi tudo.

No dia seguinte, vi o apartamento completamente fechado, escuro, sem qualquer fresta de cortina que permitisse qualquer acesso e sinal de que ali tenha, horas antes, brilhado supostos sonhos e, talvez, supostos sapatos.

No decorrer das semanas e meses, meus olhos voltaram ao modorrento passeio sobre os sapatos, agora sem histórias, no ordinário curso da vida que sempre e sempre se retoma.

Pensei ter esquecido, enfim, a Cinderela Madona do terceiro andar, quando, meses depois do fechar das cortinas, ao acaso, me caiu às mãos uma folha de jornal local, atrasada uma semana, e que servia de proteção a um vidro de espelho transportado elevador abaixo, junto de uns poucos mobiliários de mudança.

No tal jornal se estampava uma manchete sobre um crime passional em que um genro teria golpeado mortalmente o sogro amante. Sob a manchete havia a foto de dois homens abraçados e sorridentes, num registro de uma alegria e intimidade de tempos não tão remotos, sendo que um dos homens retratados, pequeno, de origem asiática, metido num roupão feminino acetinado com grande estampa floral, trazia nos pés os scarpins-salto agulha-purpurina-pequeninos......

Ei-la, a misteriosa dona, a prima-donna!

Percebendo minha estupefação, o vizinho da mudança, complementou:

        - Quem diria que aquele japonês sério, engenheiro de pouca conversa...! Pelo visto, tinha posses. Somente de vez em quando, passava o fim de semana aqui em sua casa, com seu suposto filho... Filho, sei... Era amante do rapaz e ele era seu genro. - Escondeu muito mal um sorriso irônico que só não se revelou por completo, porque o homem percebeu que meu silêncio dava à notícia a gravidade que a tragédia pessoal e a perda tão brutal de uma pessoa, ainda que um vizinho que mal se conhecesse, deveria ensejar a todo ser humano.

Peguei o jornal e soube que o jovem amante, num acesso de desespero e fúria, após ouvir do outro a decisão do fim do caso, cravou o salto agulha do scarpin no pescoço do amado, que morreu minutos depois.

A notícia estampada, cumprindo o modus operandi do noticiário policial popularesco, revelou que o crime se dera numa casa à beira mar, no litoral baiano, onde ambos se hospedavam quando viajavam juntos a negócio, e que ninguém da família, com esposa, filha e netos, desconfiava do caso amoroso. Soube-se que a polícia teria encontrado o assassino no local chorando sobre a vítima, que vestia o chambre de seda florido, ensanguentado, e o outro pé do scarpin, e que soava, na cena do crime, a altíssimo volume, a ópera La Traviata, na voz de Maria Callas.

O amante desesperado, de um modo épico, reverenciou, ao fim, toda a obra de arte do amado.

Ao pegar aquela folha de jornal e trazê-la junto ao meu peito, que ardia de susto e dor, o espelho que o tal pasquim de bairro cobria revelou um brilho repentino, que atravessou meus olhos. Eram, de alguma forma, os scarpins-salto agulha-purpurina-pequeninos e sua dona mostrando que entregavam a mim o grande fim à minha busca e, assim, um início à minha própria história.

Meus pés partiram a viagens menos estáticas. Não habito mais sacadas: ando em busca de meus sapatos caminheiros.

Às vezes, na minha estrada ou cabeça, estala o som oco dos scarpins-salto agulha-purpurina-pequeninos batendo no chão em que piso. Não olho para conferir se os trago aos pés, não importa; de qualquer forma, é por conta deles que caminho, voo, vivo histórias ou, às vezes, apenas descanso e só descanso.

Na minha jornada, quando a lua se ausenta, vem-me à memória a noite em que ela pousou sobre os sapatos na sacada. Nessa escuridão, revivo as cenas da lua sobre os sapatos em descanso e da diva, dias depois, em atuação dentro deles e tudo passa a brilhar com a mesma força do vigor da última ária cantada por Maria Callas, ouvida pela dona dos sapatos antes de sua definitiva despedida.

Os mesmos acordes e brilhos pulsam em meu corpo nessa hora e tudo se faz luz e música sobre ela, a que viveu sua própria ópera, absoluta e clandestinamente, sobre as alturas de dois saltos agulhas reluzentes que lhe serviram de alicerce aos sonhos de vida e de chave para a eternização de sua realização, na morte.

Sapatos e destinos caminham mesmo juntos. Agora entendo o sábio apóstolo!





(Imagem: Maria Callas em "La Traviata)


















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