terça-feira, 1 de junho de 2021

No Cartório de Registros

 




No Cartório de Registros, vidas e histórias começam e terminam num título. Entre o começo e o fim, há o meio, que é a espera no Cartório de Registros.

Ainda que a vida não viva mais em papéis, ou os papéis agora sejam outra coisa num amontoado de imagens, no Cartório tudo tem um papel. Há ali uma vida paralela, de uma realidade notarial, que não se importa com as outras realidades.

Na espera, entre senhas e trâmites e prazos e preços, há a angústia viciosa de não se ser nada antes do veredicto da boca de um cartorário, naquelas palavras que a gente aceita já por tradição sem entender exatamente o que são. Sabemos que, se elas couberem no papel e sob elas houver uma assinatura, algo começou a nascer para alguém.

E, durante a gestação que precede o tal nascimento daquelas entidades em forma de gente que espera, porque não se sabe se já foram agraciadas pelo estado de pessoa, números escorrem lentos no painel de chamada, enquanto nas horas os números avançam sem obstáculos. Uma, duas horas. E alguns olhos se fixam por um instante num duelo a saber se o número chamado é daquela criatura à sua frente, prestes a ganhar vida oficial.

 A senha não é dele e nem sua e não sendo de nenhum dos dois, ambos são jogados de volta no poço escuro da espera. 

Na TV as notícias sem som do programa que conta mortes. Tais mortes também têm senhas naquele saguão de espera de algum cartório. O legado, a herança, o patrimônio adquirido de quem não teve o dinheiro roubado do cofre pela empregada que fugiu como na notícia da TV.  E a patroa vítima, de cara triste e olhos ruins, diz coisas que o silêncio da TV e a máscara na boca não revelam, e mesmo assim a culpa está formada em fila e senhas na sala de espera do Cartório. Essa condenação não é averbada no caderno de registro, mas  já traz seu carimbo na vida real não colocada em cártulas.

O marido esfaqueou a mulher e a filha, a amante mandou veneno no doce para a esposa traída e a criança comeu e morreu. E o sinal soa para uma nova senha. Os olhos novamente se encontram e de novo são lançados ao poço da espera que faz com que a revolta muda, face ao sentimento do desrespeito, engendre na alma, num lampejo, algo idêntico à reação do marido, do pai e da amante assassina. (Que isso não se registre!). 

Novo número no painel se acende...Somos ainda e ainda bem os fortes que suportam a espera. 




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