Tal alarido deveu-se à menina do café que, ao servir uma xícara a um dos homens, disse:
- Esta é para o que está apaixonado.
Imediatamente, tiro os olhos da leitura e não os volto nem à mesa vizinha em risos e exclamações e nem ao pretenso cliente apaixonado; deixo, isso sim, meus sentidos captarem a energia do momento e tudo que a evocação da paixão atrelada à transgressão provocativa da menina pôde causar no ambiente. Curiosamente, o desabrido prazer da insinuação libidinosa soa tão insolente no Trópico de Câncer quanto no Trópico de Capricórnio, ainda que neste último a expressão erótica seja um poema decantado como uma rebeldia natural e nua.
A paixão proclamada, imaginada, mesmo não nos pertencendo, sempre passa por nós. Amar, cuja prática costuma ser tão egoísta, tem em si uma empatia latente. Todo amor que passa na rua, passa na nossa rua, em nosso portão. De algum modo o celebramos.
Foi nesse estado de celebração íntima e coletiva que a menina atravessou a linha de meu olhar de volta ao seu balcão. Durante esse trajeto, lento e translúcido, pude ver seu riso suspeito, descoberto, entregue, seu corpo todo ele iluminado. Vi seu aspecto, normalmente duro de trabalhadora a servir, completamente tornado esguio e curvilíneo como uma calda caindo de uma colher.
Houve um ato de potência erótica em toda essa cena, amor carnal. A menina gozou a suposta paixão no outro, a existente, a sugerida, a imaginada ou a que fez nascer! Gozamos todos - os homens da mesa, a menina e eu - numa mesma e inconfessa orgia e, por breve instante, crua e indecentemente, aquela paixão passou por cada um de nós com seu hálito quente, seguindo para alguma direção que não se ousou definir.
E de onde veio? Meu café, estacionado na mesa desde os anos 30, atravessando séculos, exalou seus últimos esboços de fumaça nesse fragmento de um tempo em 2018.
Voltei para Henry Miller em minhas mãos e nunca poderei afirmar se, em algum momento, tirei de fato os olhos e sentidos de toda aquela leitura.
Breve momento e a orgia até então instalada deixou o lugar. As contas foram pagas, os homens partiram de volta à sua rotina e, no café, os sons de louças retiniam das mãos da menina, recolhendo, séria e concentrada, os despojos da festa acabada.
O Café Zazá não resistiu à pandemia de 2020. Fechou suas portas sem qualquer ritual de despedida.
Junto com ele, foi-se o cinema contíguo, os empregos, os descansos intrajornadas compartilhados e festivos, a reverência aos apaixonados e tudo o que era arte da vida pairando na dimensão entre tempo e realidade, o que alguns chamam de sonho ou vibração.
No letreiro apagado, agora dormente sobre a porta, as palavras em vermelho não brilham mais o viajante neon que brilhou por entre dois séculos, como em meus olhos, acendendo luzes e vontades e promessas explícitas: "Café Zazá, o prazer quente de um bom café. Desde 1932".
O corpo do velho Café rendeu-se às incursões da realidade nova e brutal; sua alma talvez resista vagando em exiguas lembranças, páginas de livros, desejos sensuais já se tornando obsoletos. Talvez resista e insista na existência onírica com letreiros flutuando numa teimosia sempre acesa.
Mas do que uma vez ali foi vida, seja o que isso significou para suas bacantes personagens, nunca mais o cheiro quente das fumaças desenhando tempo e desejos sobre as xícaras nas mesas, nunca mais as bocas, sorrisos, falas, caldas escorrendo das colheres para as almas. Nunca mais orgia no Café Zazá.
(Imagem: Dois amantes (Katsushika Hokusai, 1815))
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