sábado, 28 de janeiro de 2017

SENTA QUE LÁ VEM FILME: "EU, DANIEL BLAKE"

 Eu, Daniel Blake é simplesmente um filme sensacional e nada indicado para pessoas com problemas cardíacos (refiro-me aos cardíacos dotados de humanidade, claro.).É forte.

A história trata de pessoas, de cidadania e de sistemas em que a atuação assistencial do governo é, ao mesmo tempo, nula e cruel, expondo pessoas fragilizadas a situações de humilhação, desamparo e desespero.

Eu, Daniel Blake traz todos os elementos da tragédia da cultura neoliberal, que põe o Estado como um senhor inalcançável, cheio de vontades e tratando os cidadãos como servos, quando na verdade o que deveria ser é justamente o contrário. É um filme oportuno, que desmistifica a questão da real necessidade sim do dever do Estado em garantir às pessoas o mínimo de dignidade que lhes permita continuar sentindo-se gente, cidadãs. Cá entre nós, ninguém sonha em entrar todo dia numa fila de famintos para receber um "caridoso" prato de comida para não morrer de fome. As pessoas querem comer, viver, escolher, ser felizes. E querem trabalhar dignamente ou receber seus merecidos auxílios financeiros, pagos por uma vida inteira, para assegurar as ocasiões em que se está impossibilitado de labutar.

O filme explica, nos faz sentir o que é viver sob o jugo de uma máquina estatal antissocial e burocrática, que agora se refugia na nova modalidade de exclusão, a digital, sob os humores de funcionários medíocres e assustados, de pessoas que pouco se importam, esquecendo-se que a maioria delas, em algum momento, vai estar no mesmo lugar daqueles que hoje espezinha. É inevitável fazer uma projeção com a situação atual do  Brasil e as políticas reducionistas de direitos implementadas com as PECs do governo Temer. 

É um filme que nos chama bem para perto porque fala dos nossos problemas. É um filme que, à medida que se desenvolve de  jeito cru e magnífico,  nos deixa cada vez mais grudados na poltrona do cinema nos fazendo constatar o quanto também somos nós, Daniel Blake. Tem de ter coragem de entrar nessa casa de espelhos.

quinta-feira, 26 de janeiro de 2017

segunda-feira, 23 de janeiro de 2017

Debaixo dos caracóis...







É um memorizador de cachos - disse a moça da perfumaria.
A evasiva promessa do rótulo do xampu somada à pouca técnica da explicação da garota foi suficiente para tirá-la de lá. Já não ouvia; buscava saber o que poderiam fazer cachos cheios de memória em cabeça de lembranças já tão esmaecidas. O que, de suas histórias, como num código genético, guardariam as curvas de seus caracóis?
Na tentativa de apalpar tais passados, foi para um canto da loja, fechou os olhos e, secretamente, tocou numa mecha espiralada de um cabelo cheio de vida, de sua e de tantas vidas que arderam acumpliciadas com ele, ao vento, entre dedos, esquecido, louco, pousado na fronha, sob chuva, ao sol, na canção. Cabelos rebeldes ou encarcerados, espreitando mil pontos de luzes opalinas pelos furos do chapéu, parafuseando na ciranda das flores da guirlanda nupcial, cachos dormindo nos dedinhos dos filhos agarrados a seu peito, sugando o amor, cachos derrubados no colo dos homens que amou..
Noutra tentativa, seus dedos mergulharam mais generosos no cabelo e já não lhe importava o que pensavam os que a viam, uma mulher desfazendo-se em delírios de lembranças capilares, no afã de reviver de maneira tátil as histórias em madeixas.
Como imagem na água, os cachos caprichosos se desfizeram ao toque de suas mãos, porque cachos e sonhos são assim!
Se levava tais histórias nos cachos ou na alma, era àquela altura indiferente.  De ali, ela o soube  - e era o que bastava - é que havia memórias. E, no espelho, viu uma cabeleira esplêndida, livre, alvoroçada, refulgente, contornando um rosto em cuja boca se abria um riso largo e incompreendido. Ela estava em paz com seu cabelo e com sua história. Não comprou o xampu.


Imagem: Gustav Klimt (Judith- Salomé)

Poesia em construção

Estavam sentados à minha frente
O Tempo, a Morte e o Amor
E com um deles, apenas um,
me seria concedido conversar
Escolha um, me disse a vida.
Então, pus-me a pensar
E concluí que,
com o Tempo, eu só poderia ouvir,
com a morte, somente eu falaria
O diálogo, esse sim, se daria com o Amor
Pois era o único, o único
que me permitiria modificar.
Fui e fiz o que sempre fiz,
sob o olhar mudo e compassivo
do Tempo e da Morte:
Pus-me em parelha com o Amor.