Sempre que Januária se afastava dele parecia que tudo ficava mais brando. Dentro dela uma invasão de quietude, essa paz que desarranja as coisas tiradas de sua desordem natural.
A vida era tranquilidade nesse estado letárgico. Nada era incômodo: as horas lentas, a força do quotidiano, o brilho brando nos olhos, o ordinário da existência escorrendo sem forma. Nenhum fogo, nenhum medo, tudo plano e sem precipícios.
Sim, era bom estar sem ele.
O duro, no entanto, era quando recomeçavam as revoluções (e ela o sabia), mesmo se esforçando para não dar ouvidos à voz que se fazia cada vez mais alta, insistindo em despertá-la.
Essa voz que lhe instigava falava, do prazer na pulsão dos velhos medos e Januária, firmemente, contestava dizendo de sua resignação às brancas emoções. A voz insistia e evocava o ardente desvario das dúvidas; Januária resistia e, cordialmente, respondia de sua preferência pelo calmo aprendizado. Vaticinava, então, toda a possibilidade de sua solidão; Januária, duvidosa, respondia: "recolhimento". Enfim, quase vencida, a tal voz lembrava-lhe da vida na paixão e Januária, debilmente, respondia: "ilusão".
Nem pela voz ou pelos medos ou pela dúvida ou pela solidão ou pela paixão, então vencida, o que já voltava mesmo a gritar em Januária era a conhecida e preestabelecida desordem de seu coração insensato, que se alimentava da insanidade da alegria do amor e seu inevitável desassossego.
Ela, enfim, voltava para ele, única direção para onde sua bússola apontava. E era outra vez ele que a esperava, paciente, regressar de seu antidelírio. Era ele sempre, o amor, espreitando, aguardando Januária.
E tudo voltava a ser desarranjado em Januária. Tudo estava de novo errado. E era o certo.
(Imagem: Foto do Filme "Amor à Flor da Pele", do diretor Wong Kar-Wai)