Existem pessoas que são a própria personificação do final feliz. O Zé é uma delas.
O final feliz que sempre foi, para mim, um misto de êxtase e frustração, traduzindo uma verdadeira aflição em pensar que, bem na hora que tudo iria bem, que, enfim, o melhor da vida nas histórias começaria a se apresentar, pronto!, vinha o letreiro por termo ao estado de deleite perseguido por todo o decorrer do enredo. Acho que veio de aí a minha mania de sempre complementar o desfecho depois do desfecho dos filmes num sem fim danado de possíveis felicidades estendidas. Pois é, acho que o Zé transpôs para a vida real essa extensão.
As pessoas final feliz, como o Zé, talvez nem o sejam de verdade e vivam naquele segmento de existência como que se tivessem tendo suas histórias assistidas por alguém, num curtíssima metragem de um momento.
São aquelas figuras que, em suas intermitentes passagens pela nossa retina, ostentam, no mesmo grau, brevidade e intensidade temporal. Elas têm uma história particular, você sabe disso, mas não sabe tão bem assim dessa história, de sua vida concreta; e sempre esbarra com elas nesse átimo de final feliz apreendido não pelo testemunho dos fatos, mas por sua narração..Elas nunca estão naquele ponto da vida que você as deixou num último encontro. E nada está no território do projeto futuro. Nunca. Sua fita roda continuamente, num clímax constante como se existir não fosse, como para a maioria de nós, uma sucessão de momentos ordinários, duvidosos, uma chatice mediana que costumamos chamar de realidade.
Eles estão sempre em movimento: mudaram de emprego, de casamento, de casa, estão prestes a fazer uma pequena alteração aqui ou acolá, e tudo num encaixe perfeito de rotina e emoção. E não se trata de acontecimentos exatamente significativos - o emprego, o casamento, o endereço -, tudo cumpriu seu tempo sem espanto. Se para você, pobre infeliz, todas essas passagens deixaram de ser propósito, seja por desânimo, preguiça ou desilusão, para pessoas como o Zé tudo foi feito com a leveza de seus passos lépidos, sempre pisando na ponta dos pés como quem sente o chão quente. E tudo melhor do que poderia ser, afinal.
O Zé, fazia tempo que eu não o via, porque nunca tivemos uma relação de proximidade verdadeira, embora inúmeras tenham sido nossas promessas de fazê-lo. Encontrei-o num café, à tarde, debruçado sobre um quindim a que dedicava o cuidado de um prazer roubado. Ele me viu primeiro, parada diante de meu café amargo. Quando respondi com certa solicitude à surpresa do encontro - uma alegria quase verdadeira em mim - seus olhos se encheram de luz no preparo da jornada verbal que então se avizinhava. Eu era ouvidos.
O Zé deixara, havia pouco, a cidade para morar num sítio muito próximo à cidade, aliás, um local que era o misto da pujança financeira da metrópole com a tranquilidade da mata. E o melhor, a poucos minutos de um e outro. A ele cabia virar a chave para a paisagem que queria. E os negócios, agora alocados numa ilha de puro verde e ar puro e pássaros cantantes, num condomínio de segurança, reunia e entregava tudo o que, um dia, foi necessidade. Já não mais as tinha. Estava realizado.
Contou que a filha se mudara para o exterior, e, antes que eu soasse a interjeição lastimosa pela separação, ele já decantou "as sem razões do amor" e a conveniência desse exílio para o crescimento da moça e da família. E a tal distância, de alguma forma, se encaixava perfeitamente em seu outro atual modo de vida: podia alugar o lindo quarto da moça no airbnb, no tempo exato de sua ausência intermitente. E a casa seria menos vazia e se encheria de histórias a contar para a peregrina, quando retornasse.
Outra maravilha era deixar, de manhã, o filho no trem, para o trabalho. Era o movimento certo de deixá lo e, na volta, pegar aquele pão fresquinho na padaria preferida e tomar o desjejum, agora calmamente com a companheira. E depois os negócios no andar de baixo, num arranjo ideal que quase me fazia vislumbrar as cores laranjas de um por do sol num cintilante azul prateado contornando o Zé. Pisquei os olhos, ele então se apresentou como um contraponto à minha miragem de então, contando da enfermidade do irmão...
De sua quase desventura com a tal doença e cirurgia desse irmão resultou a cura de espírito dele próprio, o Zé, e de muita gente. Agora estava tudo bem, o irmão deixou de trabalhar tanto, vivia mais, comprou um apê na orla marítima de Recife e desfrutava a alegria de estar vivo. Todo o desfecho com um tanto de realidade mas um bom bocado de final feliz vinha dessa alma do Zé. E, agora, ainda, o Zé tinha os motivos e lugar perfeitos para desfrutar, vez por outra, da terra do frevo e do sorriso do irmão renascido. (Nesse momento, aos seus olhinhos perdidos em algum lugar e tempo bons, se juntava um sorriso de criança. Achei o Zé tão bonito!).
Ah, o Zé! Comecei a pensar comigo o que fazia seus dias assim tão finais felizes.
Acho que, na verdade, ao nos relatar sua sequência de felicidade, o Zé vai meio criando um roteiro, reordenando a sua história em encadeação de acontecimentos e lugares não exatamente inventados, mas de outra forma revelados. O Zé é como um projetor que traduz em luz as personagens e fatos comprimidos, codificados nas películas fotográficas escuras, reproduzindo numa sucessão iluminada, colorida, positiva a vida real em negativo, que nem sempre é um filme bom, sabemos, mas que, teima o Zé, sempre pode ser uma história passível de ser recontada e, na contação, vivida de outra forma sob os auspícios de uma sua autoria.
Enfim, o Zé precisa por ordem na sua poesia e faz da vida em final feliz um farol de esperança para si mesmo, talvez, mas, certamente, para os que se propõem a assistir ao espetáculo de seu número. Sorte de quem compra o ingresso, pois não é sempre que se tem um Zé Mambembe fazendo barulho, colorindo, dividindo felicidade ainda que meio inventada, que adoça o café amargo e os dias de deserto.
Não sei em que estado de ânimo, depois do encontro, o Zé seguiu seu caminho e também não sei quando, nas voltas de seu farol, encontrarei novamente sua luz. A mim me coube o empréstimo daquela felicidade lépida e passageira como os encontros furtivos com o Zé em suas traquinagens diabéticas em doçuras proibidas (ainda que o Zé afirme que o quindim daquela loja não carregue níveis glicêmicos significativos. Talvez mesmo não!). Mas posso dizer a vocês, sem invenções ou reordenação de emoções, que desse encontro do Zé e de mim, eu simplesmente segui feliz. Fim.
Que subam os créditos.