terça-feira, 21 de junho de 2022

O Vestido


    



    

    Havia algum tempo que ela, de dentro da loja, o observava olhando aquele vestido.

    No começo, desconfiou da presença insistente daquela pessoa na calçada, com os olhos colados no vestido na vitrine. Não era um homem de cuja aparência se suspeitasse que se detivesse por um vestido floral.

    Para o desconcerto da desconfiada vendedora, ele entrou na loja. Ainda olhou, de dentro, a peça exposta na vitrine:

    - Boa tarde.

    - Boa tarde. Como posso ajudá-lo? 

    Ele ainda guardou um certo silêncio, olhou novamente para a vitrine. Apontou:

    - Quero aquele vestido.

    - Qual tamanho?

    Ele levou as mãos bem feitas à barba igualmente bem feita, numa atitude pensativa.

    - Trinta e seis, oito, quarenta...Qual o tamanho dela? - perguntou a vendedora.

    Com as mãos ainda no queixo, ele sorriu depois do incêndio de seus olhos:

    - Em número não sei. Mas sei o tamanho.

    A vendedora, confusa, ainda insistiu:

    - Ela é do meu tamanho?

    Sem hesitar, ele respondeu que não. Desenhou no ar o que poderiam ser as dimensões pretendidas:

    - Pode pegar os tamanhos próximos a isso?

    A moça, intrigada, trouxe um exemplar de cada número e os pendurou numa  arara de roupas, para análise do cliente, Este olhou, olhou, pegou uma das peças e a dispôs no balcão.

    Foi, então, que ele a despiu dentro do vestido. Primeiro, deslizou suavemente suas mãos sobre a textura, as alças, o recorte da ausência da dama a preencher aquele tecido. Seus olhos devoravam o vestuário deitado sobre o balcão e suas mãos o penetraram com a ortodoxia de um monge ..... Preencheu o vestido com seus braços metidos nele, como num abraço por dentro da roupa. Perscrutou a região em que se repousariam os seios, deslizou o dedo pelo decote. Desceu, após, à cintura e, com a respiração ofegante, fez as medições da região dos quadris e coxas; abriu um imenso sorriso de momentânea ausência de ali. 

Num suspiro, saiu do transe:

    - É este.

     A moça embrulhou a relíquia numa seda  e a postou nas mãos estendidas dele como prontas a segurarem um finíssimo cristal.

    Ele saiu da loja levando seu corpo cujo espírito já ia em sítios distantes... Sob o olhar da vendedora, ele dobrou a esquina. 

    Em algum tempo depois, o tal vestido seria encontrado jazendo desmaiado sobre um carpete de um quarto. Seu corpo dono, de novo, conduziria as estradas que fizeram aquelas mãos deslizarem num vestuário sobre um balcão, numa caminhada exata a destino tão preciso.

    De um lugar qualquer, o canto cortante de Fito Paez atravessaria o burburinho da multidão da rua vindo preencher lascivamente o quarto, a cama, as vozes incompreensíveis do lugar. O vestido, então vazio, em sua lassidão, tal como a canção, se prepararia para contar toda a história de um amor.





SENTA QUE LÁ VEM FILME: "O OLHAR INVISÍVEL"

 

O filme argentino, O Olhar Invisível, dirigido por Diego Lerman, com roteiro deste e de Maria Meira, na NETFLIX, é espetacular! Fala sobre o transcorrer dos dias da vida de uma jovem inspetora de escola, no contexto de uma Argentina no período final da ditadura militar.
Exercendo seu ofício com a rigidez imposta pelo momento político, também dentro dos muros da escola, a personagem Marita, despida de um olhar crítico para "as ciências morais" das normas escolares, pouco a pouco, se vê envolvida e confrontada pelo autoritarismo vigente. Este se mostra cru e implacável com todos os fracos e com seus longos braços alcançando tudo, inclusive aqueles que pensam estar protegidos sob qualquer espécie de concerto, expresso ou tácito, com tiranos e colaboradores do regime.
A película, muito fluente e com uma carga forte de tensão, coloca-nos caminhando ao lado da inspetora e mostra, paulatinamente, como a opressão se infiltra em todos os segmentos da vida física, social e psicológica das pessoas comuns. É todo um ambiente sob a vigilância de um "olhar invisível" contaminando o viver, os afetos com uma tristeza de dias descoloridos e sem qualquer proteção.
Pode-se dizer que, além de muito bom, o filme serve como ensaio experimental para os que bradam que se pode ter vida ou alguma paz sob as asas violentas, corruptas e abusivas de ditaduras. É um choque de realidade para os "iludidos".
Ditadura nunca. Nunca mais!

sexta-feira, 3 de junho de 2022

WHAT'S UP?


Engraçado, antigamente o passado ficava na memória, abstrato, impalpável. Hoje, ele fica na sequência de uma lista de contatos do Whatsapp. Com os dedos, você o faz girar rapidamente diante de seus olhos. O passado mais remoto está lá no fim.

E há aqueles - e esses doem mais de constatar- que você nunca imaginou que ficariam tão distantes na lista: -"Como é que você (você!) foi parar aí, criatura?"

O tempo é uma lista de Whatsapp. Ambos implacáveis.

Já a vida ... Nenhuma vida deveria estar ali.


Maria Taciano