quinta-feira, 8 de novembro de 2018

Três vezes te neguei

Três vezes eu te neguei
E me senti salva
Mas qual, dentro de mim,
Milhões de vezes negara a mim!
E até o último dia de meu respiro em vida
Me flagelaria e morreria
Daquela hora quando vi a morte efêmera
e neguei a vida minha negando a vida tua.
E foi, por ti, negando o que neguei
que de novo me encontrei
E não houve dor, nem pedra ou trovão
que me tirassem a paz
desses olhos de reconciliação.
No amor, no seu amor
Eu nunca mais me neguei a mim.

Maria Taciano


Sob a chuva



Enquanto eu me equilibrava nos meus saltos encharcados sob o guarda chuva, na iminência de me sentir em suplício, passou por mim o velho encurvado debaixo das rajadas de água, tendo por proteção tão somente uma das mãos num bolso das calças. Embora pudesse parecer estranha a cena, um olhar mais detido descobriria uma tal dignidade naquela composição! A figura daquele homem mostrava uma resistência a dores e tempo descansando sobre uma corcunda como de um cágado secular. Ao contrário de todas as hipóteses estéticas de belezas eternas, a proeminência traduzia uma harmonia do aleijão do corpo com a dureza de existir.
Eu o olhei, minúscula, de minha sombrinha inútil e ensaiei segui-lo em sua coragem de encarar a chuva. Ele viu minha intenção e covardia. Não trazia sua mesma dignidade o meu corpo, sempre ereto, de estátua de sal. Tinha eu todos os motivos para temer a chuva. Ele, parece, não os tinha mais e seguiu reto, com sua corcunda, deslizando sob o dilúvio infinito daquela tarde.

Maria Taciano