quarta-feira, 23 de novembro de 2016

50 Km por Hora


Um jazz sensual no rádio,
50 quilômetros por hora 
e uma cidade inteira em slow motion. 
E ninguém aprecia como é linda 
a cidade nesse ritmo!
As mesmas ruas tomam outra figura, 
que no grafite já dizia 
do fascínio, da loucura, 
um grito que ninguém ouvia. 
Hoje ele sussurra em desenhos, 
pois, aos cinquenta, se vê melhor 
os traços da mão do poeta.
Também há aquela mulher, 
que tem por teto estrela, fumaça e relento, 
que, por cinquenta tempos, 
já estava lá. Ela não via, 
ninguém a via 
(des)morando no mesmo lugar, 
sub-reptícia, na sua casa sem rua. 
Agora compõe a paisagem, 
é visagem que passa a cinquenta, 
a 50 quilômetros por hora.
Nesse ritmo lento, que não para, 
vai o coração olhando na cara 
da cidade que se escondia 
perdida no tempo que não havia. 
Na tal cadência, tempo é ainda luxo 
que não se tem, mas tem coragem, 
tem rua, tem beleza, tem feiúra, 
tem gente, tem coisa, tem alma, 
tem cidade que se vê.
Um longo jazz já é pouco 
para estrada tão comprida de vida, 
que encurtou na correria e que fugia 
de a gente parado lá!
E nesse mesmo rádio, um outro jazz começou...


Foto: Edson Taciano; Cidade de São Paulo.

sexta-feira, 11 de novembro de 2016

Hilda e Lourdes

Hilda tem mais recato
com sua franja negra
sobre os olhos rasgados de índia.
Dá um riso faceiro
de seu batom vermelho mal passado,
quando o assunto são as partes
de baixo
dos desejos de uma mulher-menina.

Lourdes é exuberante,
dona de si, riso fácil.
Olha de frente
a dura vida
e mesmo assim a quer!
Em seu porte altivo de rainha negra,
carrega o talhe de lutas,
olhos que não desviam,
um corpo seu contra o estigma de ser mulher.

Hilda fala baixo que não sabe dançar,
mas se inscreveu
na aula de dança.
Lourdes é pé-de-valsa.
Desliza toda a noite nos braços dos varões.
Lourdes chega em casa com o dia amanhecendo,
descalça.
Hilda dorme em rendas com seus cabelos em trança

Hilda e Lourdes são desejo e ação.
Vida e sonho, Lourdes, Hilda.
Mal se falam, tomadas pela lida
do salão.
Hilda acredita no sonho e na beleza,
escondida,
que brota do rouge imperfeito de seu batom.
Lourdes pouco acredita,
toma o que pode nas mãos,
com olhos, dentes, riso,
com a força de sua pele marrom.




(Foto: Sérgio Larraín; "Los siete espejos de Valparaíso".)














quinta-feira, 3 de novembro de 2016

Tremia

Ele comigo brincava, eu tremia, 
cruzando abismo entre nós
sobre corda tão mal estendida,
que aos impulsos tremia, tremia, tremia...

As outras, em pontes seguras, 
passavam zombando de mim,
e eu com mais raiva tremia na corda,
que ele tremia,tremia, tremia...

Ele nem percebia: tremia comigo,
tremia por mim, gastando seu tempo
em me meter medo e tremores.
Queria o medo de mim...

E eu tinha tudo, só não tinha medo.
Na corda, na teima, na luta tremida,
buscava tremendo desejo que havia,
e ele tremia, tremia, tremia...




(Foto: SÉRGIO LARRAIN , fisherman's daughters , Horcones , Chile , 1957)

terça-feira, 1 de novembro de 2016

Só o que se podia dar

- Eu queria ajudar, fazer alguma coisa...
E fez-se um certo silêncio no pátio, uma clara perplexidade de vê-la ali tão dissonante com aquele lugar, chegando assim, sem ninguém chamar.
Ela um pouco desajeitada, tentando dar naturalidade àquela abordagem tão repentina, continuou, em meio ao silêncio:
- Quero muito ajudar – e em total revelação prosseguiu – preciso fazer algo por eles. Não posso viver assim.
Sob o olhar incrédulo de todos, em pouco tempo soube que não poderia ficar. Não conseguiam dar crédito a seu diáfano semblante, àqueles olhos translúcidos – como eram transparentes! - e mãos delicadas que carregavam, num abraço apertado, um livro-bengala. Não, as mazelas de ali necessitavam algumas chagas na alma e estas, ah, decerto, ela não as teria o bastante!
- Só tenho a oferecer o meu amor; acho que nada além – sorriu desconcertada, abraçou o livro e saiu, deixando um rápido silêncio atrás de si e olhos que guardariam por algum tempo o delicado florido daquela blusa, a saia rosa-claro rodada, o reflexo vermelho de seus cabelos.
Na rua, andando com visível desapontamento, vencida mais uma vez por sua própria incompreensão, sentou-se no banco da praça e ficou folheando o livro que trazia. Um menino maltrapilho sentou-se perto e pediu-lhe dinheiro para comer. Ela respondeu que não tinha, que só tinha aquele livro com figuras bonitas de algum lugar distante que nem ela conhecia. Ofereceu-o a ele e aqueles olhos translúcidos faiscavam de alegria no gesto daquela sincera oferta.
Não era o que o menino esperava e este, dando de ombros, disse que um livro não mataria sua fome e se foi.
Mais tarde, ela chega a seu recanto. Sua mãe lhe pergunta por onde havia andado e ela responde que tentou dar o seu amor, mas percebeu que até o amor não é aceito em qualquer lugar.
- Que pena! – tirou a saia rosa e a blusa florida que tinha recebido de Natal, guardou-as num saco e pôs seu vestidinho sujo e surrado de sempre. Deitou-se em seu pano de estopa ao lado da mãe e irmãos e, como tinha fome e nada para comer, abriu o livro com as figuras dos lugares lindos nas fotos e inventou histórias para os pequenos.
Naquela noite, sob o pontilhão, muitos moradores de rua dormiam ao som das buzinas e dos motores de carros, mas aquela menina de olhos translúcidos e cabelos vermelhos viajava a mundos desconhecidos e cheios de esperança retratados nas fotos de um livro. Nesse êxtase, não havia lugar para enganos, preconceitos e fome. Havia uma menina sob uma ponte com um livro nas mãos e amor no coração, amor que era só o que ela podia dar...



(Fotografia: Steve McCurry)

DIA DAS BRUXAS

Elas já foram muito queimadas!
Basta.
Deem às bruxas o que é das bruxas
e aos sacis 
o que é dos sacis.