quarta-feira, 2 de março de 2016

A Rosa ou Crônica do tempo e das mãos



 






Estávamos sentados na mureta do jardim da casa de não sei quem. Conversávamos e víamos surgir, no céu ainda claro, as primeiras estrelas da noite, ao som de Chet Baker vindo de uma janela nas imediações. Os grilos íam ficando mais estridentes devido ao silêncio cada vez mais prolongado povoando entre nós
Mesmo com minha natural timidez, senti-me encorajado pelo aspecto de fragilidade que a penumbra da tarde talhava em seu perfil delgado, desenhado contra a exígua luz. "My Funny Valentine" foi a senha que me permitiu adentrar território que fosse, pensei, mais meu do que dela. Aquela jovem mulher, na iminente escuridão da noite, já não carregava a arrogância de suas certezas imaturas, de suas teorias, de sua sagaz e ferina inteligência. Era uma garota sentada a  meu lado, embalada nos acordes roucos e curvilíneos de um trompete e parecia, em silêncio, se deixar envolver. E fui apropriando-me da deixa, exibindo, vaidoso, todo o meu limitado leque de erudição sobre o jazz para adorar mais do que fascinar aquela mulher: sétima maior, meio diminuto, dixieland, Big Band, soul, "Body and Soul"...
Ela contemplava o horizonte daquele céu já negro, salpicado de estrelas. Em dado momento e sem olhar para mim,  quebrou seu silêncio e pronunciou em tom imperativo:
- Sabe, eu odeio homem sem ideologia, chapa-branca. - e me olhou diretamente então.
"Chapa-branca"?! Ela nem sabia o que estava dizendo, mas conseguiu me arruinar. Era seu intento, seu prazer em me ver sob seu controle, menor que ela. Refugiava-se para uma zona em que se julgava mais forte, a ilha ideológica estéril de afetos. Havia um sadismo seu em me desarmar, me deixar com uma enorme sensação de ridículo. Hoje, quando penso nisso, eu nem sei se ela o fazia por crueldade ou para esconder um  medo de não poder manter o segredo de sua própria emoção. Mas, naquela hora, a sua fala veio como um soco no estômago  e ela o sabia, o que me deixou ainda mais desconcertado e, por consequência, irritado. Eu a odiava!
Como sempre, saboreei minha raiva e desapontamento completamente mudo e esmaguei, entre os dedos, a rosa que eu trazia nas mãos para coroar a pretensa cena romântica que eu imaginei.
Ela me olhou com aqueles olhos de confiança e certa indiferença, quase me repreendendo por ter colhido a flor  e  tomou nas suas as minhas mãos que sangravam feridas pelos espinhos da rosa sacrificada. No entanto, o que mais doía em mim era o peito.
Acenderam-se, então, as conhecidas luzes de seus olhos, amarelos como um farol na noite, luzes que antecediam sempre aquele sorriso largo, indecente, desafiador.
Num gesto lento, levou meus dedos a seus lábios e sugou  a gota de meu sangue:
- Gosto de homens que sangram - disse-o com os olhos mais sem-vergonha que eu jamais viria  encontrar novamente em minha vida. E nos amamos, pela primeira vez, sofrega e ardentemente, naquele jardim, enquanto da tal janela Chet Baker embalava nosso delírio com a faixa "Someone to Watch over Me".
O nosso tempo passou (rápido demais, julgo eu) e, como eu temia e pressentia, nós nos perdemos; ela foi cumprir longe de mim o sacerdócio de sua liberdade, aquela que sempre me encantou, assustou, arruinou.
Mas hoje sua lembrança me pegou mais forte. Comecei o dia com sua imagem na mente. E não é, como sempre e todo o dia, aquela imagem nublada. Hoje eu estou cercado dela, seu cheiro, seu riso, seus silêncios aterradores para minha alma tão previsível e assustada. Lembro-me clara e incomodamente dela, daquela que foi a minha maior e mais ousada transgressão, por quem procurei todos os dias pelas ruas, no virar das esquinas, em olhos, camas, bares e sonhos, num tropeço da estrada. Pensei nela mais forte hoje, porque completo cinquenta anos de uma existência quase toda pacata e "chapa-branca". E, parado diante do mesmo jardim, velho, degradado e quase morto, fui atraído por uma flor reinando altiva, no meio daquela vegetação reveladora do descaso e do tempo passado, uma rosa solitária, amarela, resplendecendo no entardecer amarelo como aqueles seus olhos, sorrindo abusada, provocante. Será a mesma rosa? Será ela? 
Estou prestes a ir colher esse passado em forma de flor, um presente. Sim, eu vou ao encontro da rosa sem medo de me ferir. Vou, ainda uma vez ou por fim, sangrar aquilo que estancou em mim desde então.
Ouço no ar a velha deixa, outra senha: em meus ouvidos soa nitidamente o trompete de Chet Baker num solo da canção "Almost Blue". Quase rio.






Nenhum comentário:

Postar um comentário