A mulher caminha a passos firmes e cruza a multidão das ruas do centro de São Paulo. São quase duas horas da tarde de uma terça-feira qualquer. Seu aspecto refinado, de perfumes e lenços, meias, sapatos vermelhos, não contrasta com a paisagem degradada. Nem mesmo a sua entrada em um prédio escuro e velho chega a dar sinais de estranheza dessa composição. Na cidade grande não há tempo de conjecturas diante da urgência da vida urbana com toda sua escassez.
Ela sobe as escadas e para diante
da porta, que, entreaberta, faz de um facho de luz a única iluminação daquele corredor.
Por um instante, pensa em voltar e lhe sobrevém a imagem do peixe fora da
água se debatendo em busca desesperada de uma salvação que não terá. E ela que,
desde menina, sentia profunda piedade por esse suplício do peixe que o pai pescava mergulhará também
nas desconhecidas águas e se porá à mercê daquele que está do outro lado da porta. Por sua vez, ele nunca saberá que é o pescador a saciar-se de seu flagelo-peixe.
Ela traz muitas contradições nesse
seu passo, que é orientado tanto por desejo, quanto por raiva ou por um
sacrifício de santa. Sim, a mártir entregue à sua lapidação por uma crença
invencível, um bem maior a defender. A libertação na carne.
Parada diante da porta ainda, imagina-o dentro do quarto à sua espera, estranhamente trêmulo e incrédulo de ter
ao alcance do querer libidinoso a mulher distante de seu mundo. Ela sabe que ele não se renderá ao próprio temor e sobre a fêmea entregue devorará seu sexo, agarrará seus
pelos, peitos, sacudirá a pele no frêmito de um animalesco desejo. Naquele quarto, tendo-a nua e sem defesas, ele esquecerá (ela não) que estará também a mãe, a esposa, a dona, a mulher que não lhe pertence.
Essa ideia provoca nela certa náusea vinda, talvez, do atávico dever da moral feminina e da mistura do cheiro forte de mofo e gordura que o carpete do corredor
escuro exala. Ela tem, no entanto, uma inexplicável necessidade de experienciar toda essa
vertigem, saber-se suja com seu perfume caro, sua pele bem cuidada, suas vestes
finas, a aliança que será estrategicamente postada, em espera, na cômoda de cabeceira.
Ela entrará, não dirá palavra, deixará que ele venha e a possua com língua, dedos, dentes, o pênis penetrando-a sem o menor desvelo, sem preparo, rasgando-a e fazendo nela escorrer, entre suas pernas, todas as suas incontáveis dores e felicidades. Precisará dessas suas companheiras nesse momento.
Ela entrará, não dirá palavra, deixará que ele venha e a possua com língua, dedos, dentes, o pênis penetrando-a sem o menor desvelo, sem preparo, rasgando-a e fazendo nela escorrer, entre suas pernas, todas as suas incontáveis dores e felicidades. Precisará dessas suas companheiras nesse momento.
"Mas o que será depois?" "Como sair
do mar que se tornou deserto?", dirá a si mesma.
Ela vestirá a saia, a blusa, a aliança e
deixará logo o quarto para não ter de carregar os destroços da tempestade passada. Como fazer uma cidade em ruínas voltar a ser cidade sem passar pelo meio da arrumação? Não quer arrastar o peso do silêncio necessário ao cruzar com ele num outro cenário, fingir que finge algo que nem lhe pertence de fato. No elevador, "bom dia!" sem o prazer de qualquer cumplicidade secretada que nela jamais haverá. Queria poder apagá-lo da vida, como a abelha rainha, que extermina o macho
escolhido, após seu (dele) único delírio.Lembra-se de que é abelha, mas não é
abelha rainha.
Poderia escolher qualquer
um, quem sabe o porteiro daquele mesmo prédio velho e fétido do centro de São
Paulo, em plena terça-feira, quase às duas da tarde. Ali mesmo, atrás do balcão
de entrada. Mas o homem do quarto é, nesse momento e sem o saber, soberano único de seu querer, e ela o admite em palavras que nunca serão ouvidas por ele. Homem de estatura, viajado e inteligente que sempre a olhou com uma obscenidade explícita que contraditava sua natural timidez...A lembrança desse tal olhar de
súplica mal disfarçada lhe proporciona, ali, nesse momento decisivo, genuíno gozo. E, deixando-se transbordar em tal efêmero prazer, sente umedecer a renda delicada da calcinha, numa espécie de batismo de lubricidade e alegria.
Acorda desse êxtase momentâneo
com o pensamento nos inconvenientes do depois. Não valem tão poucos momentos de
voo por tão pesado após, pensou. Vira-se, então, decidida a partir dali, mas, nessa hora, os sinos da igreja badalam. São os sinos do Mosteiro de São Bento. Ela sorri e se lembra dessa
mesma inquietação que sentiu enquanto atravessava de branco a nave infinita da
igreja. Suspira o mesmo suspiro, e, ornamentada de toda sorte de incerteza, entra naquele quarto, fechando a porta
atrás de si, enquanto a cidade lá embaixo arde suas exatas duas horas da
tarde.