Quando Vida se decidiu, foi com a mínima influência do pensar. Pensar lhe confundia a ideia, lhe apaziguava os ânimos, reforçava nela as amarras do amor, do dever, do deixar-se a si mesma para depois. A noite tinha sido difícil, não passava. No entanto, lampejos de certezas, que lhe apareciam como imagem intermitente na escuridão, iluminavam seu duvidoso intento, delineando uma sombra de largas asas, mas que traziam, também, pesos de sacos de areia a lhe puxarem para o chão. Levantou-se resoluta. O cão a acompanhava em vigília, ali, ao pé do sofá em que ela dormira. Não, não olharia aqueles olhos caninos de incansável ternura. Isso a enfraqueceria. Mesmo assim, não pôde resistir nos cuidados quotidianos com o animal e, então, abasteceu-lhe o recipiente de ração, limpou-lhe a área de sua habitação no quintal. Ninguém o faria e ela não poderia partir com essa culpa. Seguiu, após, para o quarto e viu o homem ali, ainda dormindo à vontade, na cama que se fez mais larga com a sua ausência, o seu estéril protesto de cansaço da inexistência.. Brotaram-lhe lágrimas nos olhos que, em alguma vez, já tiveram a capacidade de enfraquecê-la por uma anestesia de perdão. Hoje não seria assim, a dor liquefeita encorajava sua decisão: iria. Na sala, já havia os rumores de seus filhos, que ao contrário de outras manhãs de sábado, puseram-se cedo de pé. Conversavam dando ares de naturalidade ao ambiente doméstico envolto num mal velado turbilhão. Ela recuou: iria? Pegou, no entanto, a mala já feita. A bolsa rota também ostentava o desgaste de uma espera infinita, com selos puídos da única viagem. A mala tão esquecida como a memória dessa viagem. Sob o silêncio forçado dos rapazes fingindo atenção ao programa na TV, ela fechou mansamente a porta e saiu. A rua perto de casa, caminho tão rotineiro, pareceu-lhe tão opressora a indicar uma única direção. Sem saber para onde ir, tomou o primeiro ônibus. No caminho, olhando pela janela, viu-se no reflexo da vidraça misturada a vultos de toda sua história, cambaleando nos sacolejos do veículo. Chorou um choro engolido e profundo, um olhar inevitável para o infinito de seu vazio. Secou nesse choro, o quanto pôde, toda a sua água de cansaço e desilusão. O ônibus, aos poucos, foi revelando caminhos conhecidos, dando-lhe um certo conforto de espírito, embora isso lhe custasse a ousadia de seu gesto. Desceu onde sempre percorreu, onde sempre fez andar sua solidão.Sem saber o que buscar, decidiu que atenderia tão só aos apelos dos sentidos: beberia quando sentisse sede, comeria quando sentisse fome. Tentou instalar-se num hotel, como uma forma de confirmar seu propósito de só prosseguir. A fila no balcão e os olhares das pessoas, talvez a perceberem que não se tratava de uma estrangeira na cidade, fizeram com que ela recuasse e adiasse a ideia de se hospedar. Sendo meio-dia já passado e premida pelo hábito da obediência das horas contrariando seu inicial intento de indisciplina, entrou num pequeno restaurante para almoçar, sem muita vontade, a sugerida feijoada de sábado. A amiga lhe chamou ao celular. Atendeu a chamada e ouviu da interlocutora os mesmos dizeres de sempre, carregados de uma incapacidade quase cruel de aprofundar a mais de um palmo no seu sentir, em sua dor. Os dizeres da amiga sempre provindos de um manual que não ensinava nunca a ouvir sem palavras. Após desligar o telefone, uma sensação de profunda piedade a envolveu: a amiga não era a que dava a ajuda, ela era a que precisava da ajuda. Voltou os olhos para o dia em torno de si e pôs-se a tangenciar a vida do sábado. Sentada minúscula, com a mala aos pés, numa mesinha do lado de fora do restaurante, localização que a incomodava uma vez já passada a rebeldia inicial de postar-se assim exposta, sozinha, numa mesa de rua, fo sei deixando tocar timidamente pelos sinais de existência desse dia, do festejado sábado com seus ruídos e trejeitos que denunciam a busca exasperada de alguma coisa sempre a um passo à frente de nós. Faltando ainda uma hora para a sessão de cinema - único refúgio, nascido de seu mais autêntico encontro consigo mesma - ela caiu numa espécie de transe de indolência não se sabe se decorrente da caipirinha do almoço ou se refluxo de sua solidão. Nesse estado letárgico, outras solidões puderam ser, então, vislumbradas e houve um regozijo seu diante dessa festa solitária. Nessa hora, o turbilhão da cidade ao qual ela nunca se sentiu pertencida abriu-lhe a porta a convidá-la "vem, você é bem-vinda nesta casa" e passaram a desfilar, diante dela, tantas formas de solidão desnudadas: a solidão temerosa na caminhada do velho carrancudo com seu cão, a solidão triste da falsa cumplicidade dos amantes em sua conversa cifrada do amor proibido e sempre insatisfatório para um, a solidão vazia das bocas sorridentes dos jovens que falam e não se ouvem, a solidão enganada das moças bem vestidas que nem são vistas...Uma cidade populosa e imensa fragmentada em partículas de solidões. Estranhamente, ali sozinha, constatou, pela primeira vez, que fazia genuinamente parte de algo. Ela suspirou e sorriu. Quando saiu, mais tarde, de seu cinema, costumeiramente renovada, caminhou feliz. Parou em uma banca de jornal e pôs-se a folhear livros de receitas, reconhecendo nelas o prazer de seus meninos e o dele. Num impulso, comprou dois ou três livros e colocou-os na mala que a acompanhou por todo o dia. Já era noite, olhou o relógio. Estava na hora de voltar.
gosti...rs
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