terça-feira, 27 de dezembro de 2022

Sfumato







Estagno dentro de meu carro, 

O que chamo de meu pequeno universo

Sem coragem de descer àquele lugar 

Ao qual costumam chamar lar


Não sei ao certo quando perdi  a hora de sair e de entrar

Neste estado de não ser consciente

O que antes era o mesmo 

Mas inconsciente


Um adeus a não sei quê

Tudo em mim foi efêmero

Constante, esse estranhamento do ordinário da vida 

Ao redor dos dias, das praças e seus canteiros recortados

E os amores, o cachorro e o carro... E dentro deste, meu refúgio


Não vejo nada que me diga respeito 

Estou em estado avançado 

De evaporação 

Não quero pensar

Ótimo! Sempre quis ser vento

(Vento no deserto em redemoinhos na areia)

O tempo


Talvez se eu dormisse e acordasse não sendo eu

Mundo novo? 

E pouso meu olhar, estranho, sobre as coisas

Espantada como um bebê vindo à vida


Não consigo me conectar

Tentando em vão me agarrar a um cordão umbilical

Que flamula ao ar como bandeira

Num país que desconheço

Não nasci de ventre de mãe?


A não ser, em mim, há esta mulher 

Que passa ao largo das coisas

Olha de longe e vem como miragem derretida 

Em seu passo sinuoso de promessas

E se desfaz num sopro morno de ausência 

E de despedida


A despedida 

Esta já me é nascida no encontro

No contato que, de medo, se adia

E dói mais em mim

Fica.


  

sexta-feira, 9 de dezembro de 2022

Paramédicos






Hoje fui ao alergista.

O doutor faltou, por conta de um mal súbito de alergia.

Saí do consultório meio triste como cheguei.

Na calçada mais adiante, vi um velho com uma flauta doce intercalando a música com histórias engraçadas.

Em volta dele, um punhado de gente ria como criança e cantava e batia palmas junto com as canções.

Eu me aproximei e ri e acompanhei a algazarra festiva  das pessoas tocadas pelo velho.

Pouco depois, percebi que minha alergia havia passado. A tristeza também.

Foi então que eu entendi: o velho era um alegrista.


Maria Taciano

quarta-feira, 16 de novembro de 2022

Nua propriedade

 Ele me possui 

invade, sim, minha alma 

com seu corpo 


E, com sua posse, me evoca

o poder que tenho

para lhe emprestar 


Sob essa artimanha de trocas 

que ele aceita sem hesitar 

ele cumpre o que lhe concedo 


Ele me possui, 

me usa, frui 

nos estritos termos da lei

que eu livremente criei 


Ele me possui

só porque

ele não é dono de mim.








quarta-feira, 9 de novembro de 2022

Valquyrias

 








Às vezes, de um jeito conhecido

Despropositada, enjoada

Eu sei do tecido destino

Estou com borboletas no estômago


Borboletas em meu estômago

Anunciam vendavais

Trazendo vertigens e medos

Borboletas causam estrondos  em mim


Vou ao trabalho. Vejo política

Sorrio de graças sem graça

Entro na loja oriental 

Compro tapetinhos de banheiro


Tudo faço para me desconcentrar

Dessas aladas maestrinas

Regentes de meu descompasso 

Entre razão e desejo


Eu já voei por esses prados

Ah, já sei aonde as tais me levam

Essas guias aleivosas

Que me desorientam o caminho


As mesmas trilhas de flores, cores

Promessas de sabores  no ar

Fazem-me  sempre acreditar

Que sou mais uma que tem asas

Vou


E breve como seus dias

Se dá  meu voo de alegria


E lá das flores, lá dos céus

Rindo, voo

Voo, rindo

Rindo, voo

Rindo, rindo


Vejo chão

Vejo no chão 

Dois pés

Meus pés 

No chão

 ...

Nem nas asas de meu sonho 

inconformado

Nem no estômago de volta  

A seu repouso imolado

Tudo de novo

De novo vazio

As borboletas se foram de mim






sexta-feira, 30 de setembro de 2022

Cataventos

 








Ele me viu chegando

Por entre as mesas

Slow motion na cena 

para um coração acelerado

 

Me pegou ali mesmo

Junto do balcão

Levantou-me o vestido

E me bebeu

O que queria e fazia 


Só em sua imaginação

 

E eu, longe e serena, 

Com minha cerveja 

de outra mesa, fria

Olhava e sabia


E nada mais

 

Pois sem mesas e cervejas

Ou travessias de cenas em longa duração

Eu me contorço é pelo  meu vizinho

Que leva horas a cuidar

Das árvores e passarinhos 

De seu jardim


E mal olha para mim

 

Ele se deita sobre a folhagem

com olhos risonhos ao céu

Fazendo silêncio para os ventos

E cigarras em escarcéu

 

E nunca sonhou em me deitar

Sobre um balcão de bar

E só me olha a me cuidar

Em minha imaginação 

 

Como fosse eu flor exótica 

que perfuma ao anoitecer

a cada nova estação de meu querer


E que nunca vai me colher



domingo, 25 de setembro de 2022

Faz-se o Sol












Quando o sol da tarde

toca assim a sua face

Tudo se dissipa

E a segunda feira, terça feira

qualquer dia

são só um dia de sol

na face que se ilumina

terça-feira, 6 de setembro de 2022

Jardim no Amor



                                           

 


Um jardineiro me ama
Floresço
Nesta estação de meu tempo
Que não é de florir

Ele passa e, sem palavras, me diz
"Bom dia, alegre margarida"

E não sabe que, por ele
Rodopio em êxtase
No jardim secreto de meu desejo
Girando minhas saias
Alvas como pétalas

De tarde, pousada jardineira ao poente,
Da janela sou eu quem busca
No canteiro, a rubra orquídea
Que, com os olhos, ele oferta
De suas mãos ardendo de terra

Numa rajada
Sou levantada ao vento
Como os pelos
E a cortina que em minha pele desliza
De estremecida azaléia


E é sob cânticos de anjos e trombetas
Que, à noite, desabrocho
Em louvor daquele que repousa
Na folhagem de meus sonhos
Espargindo orvalho em meus lençóis

Passarada... Mais um dia

Meio dia
Lá vem ele
Passa por mim e se tocam
Nossos olhos calcinantes
Que falam o nosso silêncio

Ele nem sabe, jardineiro descuidado
Que, com seus olhos fragrantes,
Semeia um poema

E colhe uma flor nascida
Em florada extemporânea
Sob meu vestido florido




*  Foto: Anete Lusina








sábado, 30 de julho de 2022

Receita Esquecida


Misturei açúcar, canela e tristeza
no bolo que hoje preparei,
vendo que na cozinha apenas resta
da nossa última festa,
além do silêncio, vestígios
de manteiga e ausência.

A fumaça do café, no fogo os estalidos
nada aquece o tanto frio
do que foi na casa o lugar da alegria
e, na boca, o governo da orgia
dos sentidos.

A massa e a mordida à mesa, e nesta,
comer do outro a amorosa oferenda
eram um deleite à nossa cozinha festeira.
Um bom bocado de poemas e beijos
(Como pudemos esquecer da mais simples receita!)

E parecia tão exata a medida
do doce que nos saciava:
azeite, aniz, açúcar e amor;
tudo em ponto de bala
Não sei por que desandou...

E havia aquele girassol 
que da janela espreitava
o segredo de nossa culinária,
os sonhos com que a gente se lambuzava.
Lembra?

Sem gosto, sem nós, também se foi.


.

quarta-feira, 27 de julho de 2022

Mandala de Giz

 





Antes mesmo 

de deslizar no pão a manteiga

você me disse 

que amava outra pessoa


O mundo deu uma volta

e, no ritmo lento e circular 

da colher na xícara  

e das horas na parede 

 tudo ao redor girou 


E a nossa história clandestina

que nunca foi mundo de toda palavra

cerrou minha boca

amarga de café 

na mesma amargura 

de meus olhos secos 


Depois você voltou 

Outra volta no  mundo se deu


Vi tão frágeis as suas certezas 

enredadas nas dúvidas de sempre 

como roupa reformada 

das dúvidas antigas 

E nós a ocuparmos ainda

o lugar das ausências oscilantes

em nossa mala

de retornos e saudades



E segue o mundo a girar

às voltas com a mesma história

numa toada que toca

os mesmos versos

de um redondo poema

sem fim


Sem fim nem começo

faz-se e desfaz-se

essa mandala de giz

que, na roda do tempo,

remoinha a elíptica ciranda

desse nosso sentimento

como poeira de chão

varrido pelo vento.





















A liberdade é azul calcinha







Eu cansei dele me apertando

me apertando, me apertando

sem me dar nenhum prazer.


Eu disse :

"-  Chega! Pra mim já deu." 

E não uso mais sutiã


Agora, em mim, tudo vibra 

Já não danço mais sozinha,

o corpo livre é meu parceiro


Ando pensando em libertar a calcinha...



Descuido.

 




Fazia um café

Pensava em você
Queimei-me
Pensamentos queimam
O café, nem tanto.

sexta-feira, 22 de julho de 2022

Sem Saída



Era tudo tão fácil que parecia ser difícil.
(Só podia ser difícil.)

E procurava e procurava
em um molho de um milhão de chaves
aquela que serviria a abrir a porta
escancarada à sua frente.

Nem tentava,
nem olhava,
não cria

O vento, os dias entraram e saíram
por aquela porta aberta
que, louca, rouca, batia e rangia
chamando-o trancado em si.

terça-feira, 21 de junho de 2022

O Vestido


    



    

    Havia algum tempo que ela, de dentro da loja, o observava olhando aquele vestido.

    No começo, desconfiou da presença insistente daquela pessoa na calçada, com os olhos colados no vestido na vitrine. Não era um homem de cuja aparência se suspeitasse que se detivesse por um vestido floral.

    Para o desconcerto da desconfiada vendedora, ele entrou na loja. Ainda olhou, de dentro, a peça exposta na vitrine:

    - Boa tarde.

    - Boa tarde. Como posso ajudá-lo? 

    Ele ainda guardou um certo silêncio, olhou novamente para a vitrine. Apontou:

    - Quero aquele vestido.

    - Qual tamanho?

    Ele levou as mãos bem feitas à barba igualmente bem feita, numa atitude pensativa.

    - Trinta e seis, oito, quarenta...Qual o tamanho dela? - perguntou a vendedora.

    Com as mãos ainda no queixo, ele sorriu depois do incêndio de seus olhos:

    - Em número não sei. Mas sei o tamanho.

    A vendedora, confusa, ainda insistiu:

    - Ela é do meu tamanho?

    Sem hesitar, ele respondeu que não. Desenhou no ar o que poderiam ser as dimensões pretendidas:

    - Pode pegar os tamanhos próximos a isso?

    A moça, intrigada, trouxe um exemplar de cada número e os pendurou numa  arara de roupas, para análise do cliente, Este olhou, olhou, pegou uma das peças e a dispôs no balcão.

    Foi, então, que ele a despiu dentro do vestido. Primeiro, deslizou suavemente suas mãos sobre a textura, as alças, o recorte da ausência da dama a preencher aquele tecido. Seus olhos devoravam o vestuário deitado sobre o balcão e suas mãos o penetraram com a ortodoxia de um monge ..... Preencheu o vestido com seus braços metidos nele, como num abraço por dentro da roupa. Perscrutou a região em que se repousariam os seios, deslizou o dedo pelo decote. Desceu, após, à cintura e, com a respiração ofegante, fez as medições da região dos quadris e coxas; abriu um imenso sorriso de momentânea ausência de ali. 

Num suspiro, saiu do transe:

    - É este.

     A moça embrulhou a relíquia numa seda  e a postou nas mãos estendidas dele como prontas a segurarem um finíssimo cristal.

    Ele saiu da loja levando seu corpo cujo espírito já ia em sítios distantes... Sob o olhar da vendedora, ele dobrou a esquina. 

    Em algum tempo depois, o tal vestido seria encontrado jazendo desmaiado sobre um carpete de um quarto. Seu corpo dono, de novo, conduziria as estradas que fizeram aquelas mãos deslizarem num vestuário sobre um balcão, numa caminhada exata a destino tão preciso.

    De um lugar qualquer, o canto cortante de Fito Paez atravessaria o burburinho da multidão da rua vindo preencher lascivamente o quarto, a cama, as vozes incompreensíveis do lugar. O vestido, então vazio, em sua lassidão, tal como a canção, se prepararia para contar toda a história de um amor.





SENTA QUE LÁ VEM FILME: "O OLHAR INVISÍVEL"

 

O filme argentino, O Olhar Invisível, dirigido por Diego Lerman, com roteiro deste e de Maria Meira, na NETFLIX, é espetacular! Fala sobre o transcorrer dos dias da vida de uma jovem inspetora de escola, no contexto de uma Argentina no período final da ditadura militar.
Exercendo seu ofício com a rigidez imposta pelo momento político, também dentro dos muros da escola, a personagem Marita, despida de um olhar crítico para "as ciências morais" das normas escolares, pouco a pouco, se vê envolvida e confrontada pelo autoritarismo vigente. Este se mostra cru e implacável com todos os fracos e com seus longos braços alcançando tudo, inclusive aqueles que pensam estar protegidos sob qualquer espécie de concerto, expresso ou tácito, com tiranos e colaboradores do regime.
A película, muito fluente e com uma carga forte de tensão, coloca-nos caminhando ao lado da inspetora e mostra, paulatinamente, como a opressão se infiltra em todos os segmentos da vida física, social e psicológica das pessoas comuns. É todo um ambiente sob a vigilância de um "olhar invisível" contaminando o viver, os afetos com uma tristeza de dias descoloridos e sem qualquer proteção.
Pode-se dizer que, além de muito bom, o filme serve como ensaio experimental para os que bradam que se pode ter vida ou alguma paz sob as asas violentas, corruptas e abusivas de ditaduras. É um choque de realidade para os "iludidos".
Ditadura nunca. Nunca mais!

sexta-feira, 3 de junho de 2022

WHAT'S UP?


Engraçado, antigamente o passado ficava na memória, abstrato, impalpável. Hoje, ele fica na sequência de uma lista de contatos do Whatsapp. Com os dedos, você o faz girar rapidamente diante de seus olhos. O passado mais remoto está lá no fim.

E há aqueles - e esses doem mais de constatar- que você nunca imaginou que ficariam tão distantes na lista: -"Como é que você (você!) foi parar aí, criatura?"

O tempo é uma lista de Whatsapp. Ambos implacáveis.

Já a vida ... Nenhuma vida deveria estar ali.


Maria Taciano


sábado, 28 de maio de 2022

Nós, a Lua

 

Gosto dela, da lua crescente

Dos bons momentos que tive,

lembro-me que muitos deles aconteceram 

sob as promessas desse caco de lua 

prestes a expandir.


Como um sorriso ou um olhar piscando, 

cúmplice, menina, essa fase da lua 

sempre se travestiu de um amuleto 

de sonhos, de alegria, de amores

 ( ah, todos os primeiros beijos inesquecíveis que beijei!...).


Acho, cá comigo, que me sinto lua, 

na lua crescente. 

Completamo-nos como yin-yang.

 Lá do céu, ela me dá seu riso de prata;

 aqui do chão, dou a ela o sonho de ser mulher, 

lua na terra.

Juntas, em meio a luzes e sombras,

 assim meio lua, meio mulher,

 somos uma toda mulher 

ou uma lua cheia.



quarta-feira, 27 de abril de 2022

Ela não escreve poemas

 Ela não escreve poemas

Faz algazarra com palavras

que não entendem 

o que ela sente









Todos os Dias

 Todos os dias, 

ao ouvir o giro da chave na fechadura,

Esperava que chegasse o seu homem

Mas sempre era apenas o marido 

quem cruzava aquela porta.







Como Acordada

 






Esta noite sonhei com você
sem você estar no sonho
Como acordada, no sonho,
estava você em mim

Era Paris, num teatro flutuante,
risos em bocas, malabares,
fotografias, pompons, cetins

Como fomos você e eu
nos dias, acordados, sem Paris

Em Paris você estava, no sonho,
apenas na minha espera por você
E percorria lugares que não sei

Como os lugares por que anda
e, acordada, também não sei

Em Paris, ou no sonho, nos teatros flutuantes
em meio aos pompons, malabares e cetins
(ou nos lugares que não sei),
como acordada, você não está
senão em mim

segunda-feira, 21 de março de 2022

Pelo Homem do Mundo

27/03/2020
 


Lembro da indicação do Papa Francisco e sua eleição e que muitos amigos, não só de aqui desta rede, lógico de convicções políticas progressistas, mas de vivência de vida real criticaram minha  expressão de grande esperança por sua jornada. Muitos relacionando sua suposta contribuição para o regime ditatorial na Argentina.


Na época, ponderei que acreditava no poder do arrependimento e que seu histórico mais recente indicava um sacerdote completamente comprometido com a causa dos pobres e necessitados. Logo após, vi o aval de Leonardo Boff e, então, pronto, fui dormir em paz. 


Confesso que o fato de ele escolher o nome Francisco e ser Argentino ( quem me conhece de perto sabe o imenso apreço que tenho por essa gente, que, recentemente, mostrou sua capacidade aguerrida de recuperar seu norte com a eleição de um governo de esquerda, depois de um baita erro e, assevere-se, sem golpe e sem perder a democracia. E, além disso, tem Maradona e  Gardel e o tango...) influenciaram muito meu olhar condescendente.  Mas não foi só isso.


Bem, já conheci algumas religiões e cheguei à minha própria conclusão de que elas não são a representação do divino, mas uma construção humana com todas as falhas e erros dos homens, em sua eterna relação de poder e medo. Minha ligação de fé é direta com Deus e Jesus e a natureza. Sim, sou uma simpatizante comunista que acredita em Deus.


Então, por que motivo meu encantamento com esse líder espiritual?


Justamente por esse seu olhar para as misérias humanas, todas e não só a material. 


Ele é um cara que traz Jesus pra terra, como tão bem relatou o samba enredo da Mangueira. Um cara que reensina o que é fé, conectando-a exclusivamente com nossa relação de amor às pessoas, ao bem coletivo, tenhamos ou não convicções religiosas.


Esse homem cumpre seu papel de amor sendo  exemplo de amor, a trancos e barrancos, expondo fragilidades, medos, erros, tentando incansavelmente aliviar dores, como cada um de nós pode e deve fazer.


Ao ver essas imagens, eu não vejo Francisco sozinho. Vejo, ao contrário, um homem rodeado de compaixão ao lado de seu rebanho chamado gente. E esse gesto amoroso me alcança, me toca, me afaga neste momento tão duro e isso me relembra minha capacidade, ou mais, meu poder de também amar e acalentar. Essa chama que, para mim, se chama Deus.


Pandemia, 27/03/2020

SENTA QUE LÁ VEM FILME: "A MÃO DE DEUS".

A cena  explícita de uma mulher velha que inicia sexualmente um menino de seus dezessete anos é um dos tantos momentos de poética beleza do filme A Mao de Deus, do diretor Paolo Sorrentino, na NETFLIX. 


A cena encarta grandeza, delicadeza e erotismo, de modo inesperado e natural, considerando toda a forma de aparente "distanciamento" dos personagens envolvidos. Um recorte cheio de mensagens simbólicas e também concretas sobre as surpresas que a vida tem!


O filme retrata o inexorável fluir do tempo e o rearranjo de desejos e sonhos diante dos  percalços da realidade, apontando a imprescindibilidade de prosseguir. Fala sobre olhares.


"- Agora vá, já cumpri minha missão: fazer você olhar para o futuro. " 


Ela diz, fumando um cigarro, ao homem recém nascido de entre suas pernas. 


Filmaço!


São Paulo, 18/12/2021

quinta-feira, 10 de março de 2022

O Parto

    


    






Eu preciso que saiba que não está só. 
Não está só nesta angústia e neste espanto. 

Como semente que se contorce
da sombra da terra para a luz, 
estamos estupefatos com este fulgor. 
Doemos. 

É duro, eu sei, lidar com o encontro de uma busca. 
Estou sem fôlego, sem ar, sem sono. 

Como tratar, tão de repente, esta não solidão que a vida oferece?  
Deixamos de ser sós, aquela solidão que nos acompanhou pela estrada.

A emoção dessa epifania transborda. 
Afogamos como numa onda que inunda uma cidade. 
Ah! Sem fôlego, sem ar, sem sono...

Eu estou embriagada de medo como você. 
Sabemos que é mútuo e único o caminho de verdades a descoberto.
Como trilhá-lo? Como resistir a deixar de trilhá-lo?
Sem fôlego! 

Venha! Fujamos de medo 
para não por na língua tal doçura fácil
que desconhecemos!

O nosso sofrimento é o êxtase, 
o êxtase insuportável desta quase insuportável alegria. 
E até isso teremos de aprender
aprender a viver com a alegria. 

É isso: nossa dor é este êxtase de parir esta alegria.

sexta-feira, 4 de março de 2022

Das Coisas que a Lua Conta - O Riso do Amor

 



O humor é primo irmão do amor

Toda a vez que um do outro se aparta,

saibam todos, algum amor morreu

Morreu para ambos, morreu para um


Posto, então, se virem alguém absorto,

detido em pregada lembrança

E seu semblante revelar um sorriso

ainda que esmaecido por sombras


Podem ter a certeza que tal criatura

sozinha não está 

Está em cadenas, entrelaçada, 

na dança risonha de alguma lembrança

de uma lembrança de amor.








segunda-feira, 28 de fevereiro de 2022

Sertão


 

    Não é um desgosto, pelo contrário, há ali muitas fibras tecidas no querer. Nem é um desencanto como espera que não se cumpre. Concretamente, esperas nem sequer houve. Nem é, tampouco, a perda do que antes fora, pois há sempre um estado de um contínuo permanecer que se renova.

Na verdade , trata-se de um estranhamento, um desajuste, na melhor expressão. Simplesmente, uma peça que não se encaixa no último espaço do tabuleiro, não tendo sido ela feita de fato para encaixes:  una, exclusiva, em seu começo e fim de objeto ser.

Talvez esteja no vento que vira a folha, no sol  que clareia e traduz mais conhecimento e vida; ou na chuva que apenas chove, porque é época de chover, haja ou não as sementes lançadas ao solo.

É um algo de desarranjo num todo que se harmoniza. Sem destino a chegar, tudo é um estado de fluência para algum lugar. 

E nada se quer, mas se obtém. E nada se dá, mas se completa. 

Sem previsões de necessidades, de abundâncias ou explicações, apenas é.



Um sopro de Amor




Vim com a alma lanhada, ávida por vida. 
Encontrei-o com as mãos estendidas
a suster, junto das suas, 
as minhas dívidas.


Os nossos corpos foram maestros
da sinfonia do gozo e  da dor.
Pensamos que era outra vida que nascia
de nosso desejo, dos gritos do nosso amor.

Nascer soubemos,
viver foi matéria que não entendemos 
no mesmo idioma. 
Mesmo que por línguas se desse 
nosso mais ardente encontro

Minha entrega brasil queimou sua pele
feita de gelo, medo e despedida. 
Morríamos a cada respiro 
de um gostar desentendido

O pulsar da vida me carregou para longe; 
o medo da morte o fez ficar.
E sendo vida o que se quer, 
por amor, vou vivendo por mim e por você.

Eu levo comigo as suas feridas 
e lhe deixo as minhas, 
para você não me esquecer.

sexta-feira, 25 de fevereiro de 2022

Sem Sentido

 



Como desfazer o nó

de meu coração apertado

já, de fato, meio habituado 

a suas cordas emaranhadas


Mas desta vez o golpe foi forte

assaltando sua bases

de linhas desordenadas

todo entregue a alguma sorte


Sente-se trôpego o danado

Sem ritmo e fôlego

tendo seu sofrido ribombar

pausas mais estendidas de silêncio


Nem mais chora  o desditoso

ou repulsa os desencantos

Bate só por costume e ofício

meu coração sem sentido























 


quinta-feira, 10 de fevereiro de 2022

A Fuga




O amor me escapou

por entre os dedos

os olhos, o sexo

Fiquei nua numa nudez pelo avesso,

contrária àquela da que o amor me vestia


O amor - eu não entendi -

não me deu explicação

Desceu a escada, transpôs a porta aberta


Penso que não se sentiu em casa,

sem grades e portão

Foi buscar outra morada

mais segura e encadeada


O amor não suportou tanto espaço,

tanto vento, tanta ausência de lamento

E esgueirou-se por entre os vãos

das palavras silenciadas


O tesão o terá assustado e a entrega

sem tarifas? O amor não aguentou

nossa vida, a liberdade, as ínfimas alegrias.


O amor me escapou dos dedos 

de minhas mãos abertas

Estas mãos que lhe abrasavam o corpo, 

durante toda a nossa festa


Foi-se o amor sem um adeus,

sem clara razão e endereço

Deixou parte do vazio

que em sua mala levou.


Foto: Victoria Borodino


.

terça-feira, 18 de janeiro de 2022

De Lua





Estou feliz.

Talvez pela lua, 

talvez por uma fase em mim.


Talvez  porque seja eu de lua

Talvez porque  brilhe alguma luz

da minha felicidade


Talvez nem se atribuam 

estados de alma à lua, 

ali, só descansando no céu

num puro nadismo


Com lua ali ou lua em mim

Ou nada a ver com nada disso

Uma coisa é certa e posso dizer

que hoje estou de lua, feliz




Imagem extraída de Coskun Cokbulan

sábado, 15 de janeiro de 2022

Depois do agora: depois.




Provoca o membro a erupção da alma

e dentro forja a lava que conjuga fora

água e espuma de ondas

que arrebentam nas entranhas


Orgasmo.  

Conjunção da pele abstrata,

estado de sacrílego espectro  

entre a volúpia e a matéria 


Que nome se dê a tal pulsão do ser:

dor em entrega, amor em melaço, 

ou o que se nomeie no átimo

do que do fogo sobrevirá mormaço


Respira, ama, odeia 

e, em combustão, explode

O que saber? Não é questão imperativa.

Depois de tudo, retornarão

buscas, dúvidas e a velha expectativa.


Os olhos vagos no céu da face comovida,

são estrelas guias do caminho 

do andarilho

estático no êxtase da pausa do cansaço.


É caminhada, 

é agora,

é poder, 

fracasso...

Nascer na morte para a vida.



quinta-feira, 13 de janeiro de 2022

Do Ensaio das Línguas




 Você chegou por entre minhas letras

e abriu o ve de minhas pernas,

que versejavam na ânsia 

de sua língua matter


Não se deu a elisão pretendida

de nossos corpos na alma.


Nos versos decantados

os desejos não rimados

não compuseram redondilhas.

A tal sílaba sussurrada  

não bastou e quebrou a medida.


Mas era um longo poema

em que o ritmo se daria

em estrofes livres 

ou terceto de delícias

de desregrado arranjo poético.


Ledo engano!

O amor é a poesia.

De você, nem um  nem outro.

Voltei a trovar sozinha.

sexta-feira, 7 de janeiro de 2022

MALMEQUER, BEM ME QUER

Ela disse:

- Vamos mais?

Ele respondeu:

- Fiquemos. Parece que não sabe estar!

- Pois digo que nosso estado é fluxo, girando... - ela lhe respondeu com os olhos em chamas.  E então, com um sorriso que lhe escapulia de entre os lábios, apontou:

-Vamos na roda gigante?

Ele suspirou...


Maria Taciano